Na Mostra Internacional, Entretempos registra aventura coletiva da moradia

Documentário busca recompor, de modo poético, a trajetória coletiva dos integrantes da Associação do Mutirão Paulo Freire, que construíram, em regime de mutirão autogerido, um conjunto habitacional para cem famílias em Cidade Tiradentes.

“Mudar é difícil, mas é possível”, repetiu mais de uma vez o pensador Paulo Freire. Inspirado pela noção singular de que a melhor via para a educação é a interação entre homens e o mundo, o filósofo brasileiro continua a ser também a inspiração para todos os que almejam mudança em sua realidade. Filmado entre 2006 e 2011, o documentário Entretempos  registrou a trajetória coletiva da Associação do Mutirão Paulo Freire, que no curso de dez anos construiu – em regime de mutirão – um conjunto habitacional para cem famílias em Cidade Tiradentes, no extremo leste do município de São Paulo.

Dirigido pelo cineasta e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Henri Arraes Gervaiseau, Entretempos é um esforço coletivo do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), dos alunos da graduação do curso de Audiovisual e dos moradores que cederam suas histórias de vida para o registro das câmeras de cinema. O documentário foi selecionado para a 36a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que acontece entre os dias 19 de outubro e 1° de novembro em diversos cinemas da capital paulistana.

“A ideia era retratar um mutirão autogerido”, explica o diretor Henri. Convidado pelo professor Ismail Xavier, entre 2002 e 2003, para colaborar com a criação de um setor audiovisual dentro do CEM, Gervaiseau assumiu para si a complexa tarefa de unir pesquisa e cinema. O projeto envolvia produzir documentários que dialogassem com pesquisas do Centro ou que se constituíssem, eles próprios, como pesquisas ensaísticas de questões trabalhadas por pesquisadores.

No caso do Entretempos, o objetivo era desenvolver um trabalho de investigação centralizado num único território. Nesse sentido, o documentário, que dialogou inicialmente com uma pesquisa de cunho antropológico coordenada pelo antropólogo Ronaldo de Almeida, ganhou a missão de dar visibilidade a regiões distantes dos centros das cidades, mas que não eram ocupadas por estruturas comuns em favelas.

“Cidade Tiradentes era uma região que passou a ter presença no quadro urbano de São Paulo em função da criação de um enorme conjunto habitacional”, nos anos 1980, explica o diretor ao destacar o cenário principal da produção, no qual está inserido o pequeno conjunto representado pelo prédio familiarmente chamado de “Paulo Freire”.

Documentar a construção do “Paulo Freire” foi um passo numa nova direção, já que, segundo Henri, a maioria dos documentários que tratam da questão de moradia urbana acentuam a dimensão de protesto, enfocando conflitos entre os Sem Terra e Poder Público.

“O que queríamos era ir além disso, retratar a vida em sociedade e representar o movimento social como um sujeito atuante e complexo”, explica, ao destacar que a questão da moradia representada diz respeito, principalmente, ao cotidiano das pessoas e como elas lidam com a perspectiva de construir sua própria moradia em um processo coletivo.

Produção de guerrilha

Apesar dos esforços para captarem o maior número de etapas da construção do “Paulo Freire”, nem tudo foi registrado pelas lentes. A obra, que começou em 2002, foi concluída somente em 2011 e documentada pela equipe oficialmente desde 2006.

Foram quase seis anos de filmagem, todas as tomadas feitas dentro do prédio. “O que se vê é de dentro para fora, através de molduras e janelas”, enfatiza Henri. Boa parte da pesquisa que envolveu o filme foi conduzida por alunos do 2º e 3º ano do curso de Audiovisual. Roteiro, argumento e montagem também ganharam reforço dos estudantes.

“Um dos alunos chegou a passar dois meses, não continuamente, no próprio prédio. Com uma câmera e um gravador, ele próprio gravou sozinho algumas das tomadas que fazem parte do filme”, conta o diretor. “Foi um exercício de direção à distância”, salienta, ao relatar que o material registrado a cada estadia era sistematicamente visto e discutido com ele durante a produção.

Concluído recentemente, Entretempos já foi exibido para alguns dos moradores e participantes da filmagem, mas estréia oficialmente na Mostra Internacional de São Paulo. Classificado por Gervaiseau como uma “produção de guerrilha”, o documentário fará parte de uma programação abrangente e contará com a Mostra como um dos principais meios iniciais para sua divulgação.

A Mostra é composta por cinco seções: Competição Novos Diretores, Perspectiva Internacional, Retrospectivas, Apresentações Especiais e Mostra Brasil. Todos os filmes brasileiros concorrem ao prêmio Itamaraty, que contempla os filmes mais votados pelo público.

“Acredito que [ser selecionado para a Mostra] seja um reconhecimento, tanto da força estética, quanto da integridade artística da proposta. Ao mesmo tempo. acredito que o fato de ser um documentário que aborda de forma poética e não propagandística essa realidade social possa contribuir para dar visibilidade ao assunto”, conclui.

Apostando na inteligência do espectador, Entretempos oferece outra abordagem de percepção sobre os desafios dessa “aventura coletiva” que é o campo da moradia popular no Brasil.

Mais informações: site www.centrodametropole.org.br, http://mostra.org

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