Mostra de Cinusp e CCBB resgata direção ‘discreta’ de Louis Malle

Retrospectiva de cineasta francês precursor da Nouvelle Vague inclui todos os seus clássicos e também raridades, como o documentário oceanográfico O Mundo do Silêncio, seu primeiro trabalho no cinema.

Menos visado pela academia do que Godard ou Truffaut, mas longe de ser menos importante, o cineasta francês Louis Malle pode ter essa injustiça amenizada. Em homenagem aos 80 anos de seu nascimento, celebrados no dia 30 de outubro último, o Cinema da USP Paulo Emílio (Cinusp), em parceria com o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo apresenta uma ampla retrospectiva dos filmes do cineasta.

A mostra reúne todos os clássicos de Louis Malle e ainda raridades como O mundo do silêncio, Calcutá e Meu Jantar com André. Além das exibições gratuitas, a programação prevê também debate no dia 30 de novembro e a publicação, em 2013, pela Coleção Cinusp, de um livro ilustrado com filmografia e textos críticos sobre o cineasta.

Natureza, naturalismo

Louis Malle, quinto dos sete filhos de um rico industrial, nasceu em 1932, em Thumeries, no norte da França. Iniciou os estudos em Ciências Políticas na Sorbonne por pressão da família, que desencorajava suas pretensões artísticas. Mas não teve jeito, em 1950 Malle abandonou a universidade para matricular-se no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), onde graduou-se como diretor e roteirista.

Logo que saiu da escola de cinema, Malle foi trabalhar como câmera e assistente de direção do documentário O mundo do Silêncio, do célebre oceanógrafo francês Jacques Cousteau. O filme mostrava, em 1956, cenas pouco vistas anteriormente do fundo do mar. Marcos Kurtinaitis, curador da mostra e coordenador de programação do Cinusp, conta que com o tempo o longa tornou-se renegado pelos ecologistas e pelo próprio Cousteau.

“Eram outros padrões e comportamentos, a equipe não teve os cuidados que hoje outras têm para filmar no fundo do mar. Eles mataram bichos e explodiram corais”, relata. Mesmo com todos esses problemas do ponto de vista da ética dos dias atuais, Kurtinaitis considera importantíssima a exibição do primeiro trabalho de Malle.

No mesmo ano do documentário, Malle foi assistente de direção de Robert Bresson no filme Um Condenado à Morte Escapou. Bresson foi um cineasta “naturalista”, possuidor de um estilo seco e direto: não utilizava trilha sonora e deixava a cena prosseguir praticamente sem cortes, por exemplo. Kurtinaitis acredita que esse estilo pode ter influenciado Malle, principalmente em seus primeiros filmes. “Vemos no Malle essa preocupação em não exacerbar as emoções, em não deixar a câmera interferir nas ações, como se fosse um pedaço da vida real mesmo”, analisa.

Trinta Anos Esta Noite, de 1963 e que integra a retrospectiva, é um filme que, na opinião de Kurtinaitis, Bresson certamente teria feito também, ainda que à sua maneira. “Não há lances extraordinários, nada fora do normal. O filme está preso à realidade. Por isso, acho que Malle se influenciou pelo tempo que trabalhou com o Bresson”, completa o curador.

Liberdades

Mas foi em 1957, com apenas 24 anos, que Malle estreou como diretor de longas-metragens com Ascensor Para o Cadafalso. Ao mesmo tempo de suspense, com drama moral e ainda um toque de comédia, o filme mostrou-se diferente do cinema que vinha sendo feito até então. “Foi um cinema francês menos quadrado, Malle já começava a aproveitar a rua, a câmera na mão e uma série de liberdades que não tinham sido exploradas ainda”, explica Kurtinaitis. O thriller contava ainda com trilha sonora original do jazzista Miles Davis e trazia como protagonista a até então desconhecida Jeanne Moreau. A relação entre ela e Malle rendeu ainda outros três filmes que compõem a mostra: Os Amantes, Trinta Anos Esta Noite e Viva Maria!

Na homenagem, Os Amantes (1958) ganhará ainda, após sua exibição do dia 7 de novembro, no CCBB, um debate entre Kurtinaitis e Eliane Robert Moraes, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Mais do que à famosa cena de nudez de Moreau – sua exibição resultou em uma ação judicial por obscenidade na Justiça norte-americana –, tanto o curador quanto a professora atribuem o choque causado pelo filme à sua temática e à liberdade conferida à personagem central feminina. Até então, a maior parte das grandes histórias de adultério, como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, tratavam do sentimento de culpa. Não é o que acontece com a personagem adúltera de Moreau: “Ela não sofre por isso, não é punida no final – o que seria o normal – e mais ainda, ela toma todas as decisões de forma independente. Eu acho que essa personagem é uma das primeiras mulheres livres do cinema”.

Essa personagem é
uma das primeiras mulheres
livres do cinema.

Eliane vê em Os Amantes uma semente da perspectiva libertária que estouraria nas décadas seguintes o movimento hippie dos anos 1960/70. “Malle estava no pós-guerra, que é um período extremamente conservador, já começando a subverter padrões sexuais e moralistas”, reflete

Nouvelle Vague

Seja por suas inovações na direção, pelas temáticas polêmicas ou pelo simples encaixe temporal, Louis Malle é visto, sob muitos aspectos, como um precursor da Nouvelle Vague, movimento contestatório que revolucionou o cinema nos anos 1960. Kurtinaitis ressalta como Malle já propunha um filmagem e cenário menos controlados: “Com certeza esses primeiros filmes dele são de Nouvelle Vague, porque tiraram o cinema do estúdio, colocaram os atores na rua, trouxeram a luz natural, a câmera na mão e pessoas reais para as imagens”, afirma o curador.

Godard, Truffaut, Rohmer, Chabrol, Malle, todos viviam na mesma época, mas este último não fazia parte dessa “panela”. Os diretores da Nouvelle Vague eram críticos de cinema antes de serem cineastas e escreviam para a mesma revista. A “turma da Nouvelle Vague”, de acordo com Kurtinaitis, tinha um estilo autoral mais forte: “Sempre que vemos um filme do Godard sabemos que é dele, mas nos filmes do Louis Malle a mão do diretor é pouco visível. Ele não fazia questão de deixar uma marca sua que todos reconhecessem”.

Talvez a grande marca dele seja essa
capacidade de fazer a gente esquecer
que o filme está sendo dirigido por alguém.

Essa “mão leve” de Malle, como gosta de chamar Kurtinaitis, seria, na verdade, sua grande característica: uma produção toda de elevado nível, mas muito diversificada. Sua filmografia passa por comédias alucinadas e fantasias surreais – como a “brincadeira filmada” de Zazie no Metrô –, suspenses policiais e dramas existencialistas.

“Talvez a grande marca dele seja essa capacidade de fazer a gente esquecer que o filme está sendo dirigido por alguém. Eles têm um tom tão natural que esquecemos que há um diretor por trás”. Outra constante no trabalho do cineasta é a imparcialidade com que conta suas histórias. Mesmo em relação a personagens polêmicos, como um colaboracionista francês do regime nazista, em Lacombe Lucien, o curador não vê um julgamento direcionado por parte de Malle, deixando o espectador mais livre.

O Cinusp fica na Rua do Anfiteatro, 181, Colmeia, Favo 04, Cidade Universitária, São Paulo. Mais informações sobre a programação no site http://www.usp.br/cinusp.

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