Pesquisa do MAE indica que populações nativas do sul do Brasil praticavam agricultura

Plantios realizados pelos povos Jê Meridional antes da chegada dos portgueses complementavam caça e coleta.

Júlio Bernardes/ Agência USP de Notícias

Análises microbotânicas realizadas em sítios arqueológicos na região de Urubici, em Santa Catarina, revelam que as populações Jê Meridional produziam alimentos como o milho, a mandioca e a abóbora mais de cem anos antes da chegada dos portugueses, acontecida no século 16. A descoberta feita em pesquisa do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP modifica a ideia de que os habitantes das terras altas do sul do Brasil eram semi-nômades e viviam principalmente da caça e da coleta. As análises permitiram interpretar as paisagens e compreender a história das populações, antepassadas dos atuais índios Kaingang ou Xoleng, além do padrão de assentamento humano dentro da tradição arqueológica Taquara-Itararé.

A maior parte dos 104 sítios arqueológicos mapeados no estudo ficam ao longo do alto curso do Rio Canoas, que corre no meio de um vale largo e plano, cerca de 1.000 metros (m) acima do nível do mar. “O rio recebe as águas de vários arroios que percorrem vales incisos e florestados pela mata de araucárias, vindos de nascentes nas zonas úmidas dos campos, por volta de 1.800 m de altitude”, aponta o arqueólogo Rafael Corteletti, que realizou a pesquisa sob orientação do professor Paulo De Blasis, do MAE. “Alguns desses sítios foram escolhidos para realização de escavações e uso de ferramentas de geofísica, com participação de equipe do Instituto de Astronomia, Geofísica e Cîencias Atmosféricas (IAG) da USP, como o GPR (ground penetration radar) e o magnetometro.”

As escavações se concentraram principalmente no Sítio Bonin. “Foram coletados fragmentos de cerâmica típica da tradição arqueológica Taquara-Itararé, ligada aos povos Jê Meridional, contendo resíduos de alimento carbonizado aderido às paredes”, diz o arqueólogo. As amostras passaram pelo procedimento de extração e análises de grãos de ámido e fitólitos no Laboratório de Paleoecologia e Arqueobotânica da Universidade de Exeter (Inglaterra), com a colaboração dos pesquisadores José Iriarte e Ruth Dickau. “Alem disso, esses fragmentos foram tipologicamente analisados e o resultado deste procedimento reconstruíu, pelo menos, 23 diferentes vasos de diferentes tamanhos, indicando uma grande variedade de utensílios num contexto doméstico.”

Análises de geoprocessamento foram realizadas para a compreensão da paisagem em que os sítios arqueológicos estavam inseridos no vale do alto Canoas. “Foram feitos testes como densidade de sítios, intervisibilidade acumulada de sítios e criação de rotas de menor custo, entre outros”, afirma Corteletti. De acordo com os estudos linguísticos do antropólogo Greg Urban, o braço sul das línguas Macro-Jê, a família Jê, provavelmente se separou do grupo principal há 3 mil anos. “Urban acredita que o Jê Meridional, ou seja, os grupos Kaingang e Xokleng, iniciaram uma migração desde o Brasil Central para o Sul em torno dessa época.”

Presença

A presenca Jê no alto vale do Rio Canoas, na região de Urubici, se inicia em um periodo ecológico marcado pela predominância da vegetação de campos em relação a floresta de araucária, há mais de 1.500 anos. “Ele é seguido por uma fase de grande expansão das araucárias, por volta de 1.000 anos atrás, com aumento do número e dos tipos de sítios arqueológicos, indicando grandes mudanças sociais”, descreve o arqueólogo. “Também há vestígios de uma fase anterior a presença dos europeus, 600 anos atrás, no Sítio Bonin, e de uma fase em que a implantação de fazendas portuguesas no interior do continente, há 300 anos, desestabilizou a estrutura social e econômica desses povos.”

A análise dos fragmentos cerâmicos que compunham os utensílios domésticos, encontrados nas estruturas de cocção (fogões) do Sítio Bonin (datado do século 14) possibilitaram identificar vestígios microbotânicos de plantas domesticadas como milho, abóbora e mandioca. “Também foram encontrados microvestígios de inhame e feijão, mas não há certeza se essas amostras são de plantas domesticadas ou selvagens”, destaca Corteletti. “Além de criar um cenário onde as populações Jê meridionais são dotadas de uma ampla base alimentar, baseada em plantas cultivadas e coletadas, além da coleta de moluscos, da pesca e da caça, esses dados auxiliam a alterar as proposições tradicionais de que sua agricultura era incipiente e de que a alimentação era baseada quase que unicamente na arboricultura da semente da araucária, o pinhão.”

O arqueólogo observa que a partir dos resultados das escavações é possível dizer que, mais de um século antes da conquista da América, as populações Jê no sul do Brasil desenvolviam aquilo que chama de “economia mista”, onde a agricultura exerce um papel importante de complementaridade a caça, a coleta e a pesca. “Pode-se inferir que a economia dos moradores do Sítio Bonin, em condições ideais, possibilitava a sua permanência durante todo o ano no planalto”, ressalta. “As variedades modernas de mandioca, milho, feijão e abóbora tem épocas de plantio e colheita que permitem dizer isso, já que esses cultivos acontecem exatamente na primavera e verão.”

O Projeto Arqueológico Alto Canoas (Paraca), Um Estudo da Presença Jê no Planalto Catarinense, é um desdobramento do Projeto Arqueológico Sambaquis e Paisagem: modelando a inter-relação entre processos formativos culturais e naturais no Litoral Sul de Santa Catarina, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O Paraca foi desenvolvido na área do município catarinense de Urubici, obedecendo a todos os trâmites legais exigidos para a pesquisa arqueológica. O aporte financeiro para a realização do projeto partiu do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Mais informações: email rafacorteletti@hotmail.com

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