Pesquisadores discutem possível ascensão de uma nova classe média

Jornada interdisciplinar debateu a nova realidade social e de consumo das classes intermediárias brasileiras

Na última década, tanto a mídia quanto os acadêmicos têm evidenciado a ascensão social de uma parte importante de famílias brasileiras, que antes estavam em condição de pobreza. Essas pessoas estariam compartilhando padrões de vida, estudo e posse próprios da classe média. A partir dessas constatações, o Laboratório de Estudos da Família, Relação de Gênero e Sexualidade (Lefam) do Instituto de Psicologia (IP) da USP, convidou especialistas para discutir o tema: A nova classe média: famílias em mudança?

Um evento realizado no dia 12 de agosto buscou reunir opiniões de pesquisadores e profissionais de diversas áreas de conhecimento sobre o surgimento desta nova classe e a relação dela com o consumo de tecnologia, moda, mídia e cultura, enriquecendo assim pesquisa já efetuada pelo Lefam.

Em âmbito geral, o laboratório tem se dedicado a estudar os impactos causados por situações de vulnerabilidade  (miséria, violência urbana, migrações) na dinâmica familiar, tendo como ferramenta o campo da psicanálise da família, sempre articulado a questões sociais.

Política, economia e mercado

A primeira mesa foi iniciada pelo consultor de marketing André Torreta, que afirmou a existência de uma nova classe formada pelos indivíduos pertencentes a famílias com renda entre R$ 1.000 e R$ 5.200. Segundo ele, “a mudança econômica está ocorrendo antes da mudança do cidadão”. Isso significa que antes de terem acesso a educação e saúde de qualidade, as pessoas estão consumindo mais. As consequências dessas mudanças podem ser percebidas através de transformações no oferecimento, por exemplo, de TV a cabo: os programas passaram a ser dublados, facilitando o acompanhamento da narrativa, já que a taxa de analfabetismo funcional é alta dentro do maior grupo de consumidores, a classe C.

A pesquisa do professor André Singer da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP vai de encontro à anterior. Ele afirma não haver uma nova classe média e sim um novo proletariado, em sua maioria, sem cidadania trabalhista. O fenômeno ocorrido, na verdade, foi ilusório, visto que cerca de 40% da população brasileira ainda permanece nas classes D e E e, mesmo os que ascenderam socialmente, ainda dependem de programas assistencialistas do governo, já que a maioria das famílias se encontra na base dessa nova camada. A nova classe média seria a mesma classe intermediária, porém com uma nova roupagem.

O economista Ladislau Dowbor apresentou uma possível solução para os problemas estruturais. Em um país como o Brasil, onde o êxodo rural aconteceu por esgotamento do campo e não pela capacidade de absorção das cidades, “a urbanização é um desafio para o sistema de organização dos recursos. Em uma grande concentração urbana, o grosso do consumo, para ser barato, tem que se basear em consumo público”. Em modelos organizacionais como o da Suécia, altas taxas de impostos (cerca de 60%) são cobradas, entretanto são revertidas em serviços (mobilidade, saúde, previdência, educação) de alta qualidade e administradas por conselhos locais de nível menor que as prefeituras.

Cultura

A segunda metade do evento foi iniciada pela é a hipótese da pesquisadora Heloísa Buarque de Almeida, da FFLCH: o conteúdo dos programas televisivos deveria ser afetado pela alteração do público consumidor. Entretanto, a antropóloga diz que não há mais negros ou pobres nas novelas e comerciais. A mudança no padrão de consumo não significa alteração na hierarquia social, o que é vendido ainda é subproduto do modo de vida da classe média tradicional.

Algo diferente aconteceu com alguns gêneros musicais. Orientado pelos resultados de sua pesquisa de mestrado, Ricardo Teperman comparou as vivências musicais dos Racionais MC’s (grupo de rap dos anos 90) e do Emicida (rapper Paulista). “O rap passou por transformações que seu público passou”, concluiu ele depois constatar as diferenças do conteúdo da música, da produção e da relação com os jornalistas entre os artistas. Nesse caso, o Emicida possui uma relação mais afetuosa com o mercado. O rap costumava atuar como forma de protesto principalmente dos jovens da periferia, hoje, consolidado como gênero musical, ficou aberto a variações que podem ou não ter ligação com sua origem. Isso pode ser visto na vertente que faz apelo ao consumo, o chamado “rap ostentação”.

O teólogo Jung Mo Sung finalizou as exposições dos convidados comparando o capitalismo com a religião. Segundo seus estudos, hoje “a religião são símbolos e desejos que fazem as pessoas convergirem em uma mesma direção”, ou seja, o capitalismo se assemelha a uma doutrina religiosa e já é adotado por algumas crenças. As igrejas que adotam a “teoria da prosperidade” propagam uma afirmação para consumir. A benção divina se dá pelo aumento do consumo em uma sociedade em que “a dignidade humana é medida pela infinidade de seu dinheiro”.

O encerramento do seminário foi ministrado pela professora Belinda Mandelbaum, do IP, que ressaltou a relação entre as discussões e o trabalho do Lefam. Segundo Belinda, é importante a contribuição das diversas áreas no estudo do impacto que a identidade de classe construída pelo consumismo causa nas famílias. A instituição familiar é o último reduto de solidariedade, mas de forma contraditória, já que também é um núcleo de consumo.  A pesquisadora também questionou a existência dessa nova classe média, indagando se isso não seria apenas uma realidade social fabricada midiaticamente.

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