Caso da ‘gripe A’ aponta para a saúde como questão de direito internacional

Obra de professora do Instituto de Relações Internacionais da USP debate como a política e o direito internacional atuam nos casos de pandemias.

O século 21 vê renascer entre os chefes de Estados e na Organização Mundial da Saúde (OMS) o temor sobre a propagação de doenças infecto-contagiosas. Um cenário conturbado, que inclui até o possível uso de armas químicas e biológicas, coloca a saúde como questão de segurança pública. Lançado pela pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, Deisy Ventura, o livro Direito e Saúde Global – O caso de pandemia da gripe A (H1N1) revisita, sob esta perspectiva, a última pandemia que afetou diversas populações no mundo.

Interno e externo

A obra corresponde à tese de livre-docência da professora Deisy Ventura, que há anos vem se dedicando ao estudo das relações entre o direito internacional e os direitos nacionais. A motivação para escrever o livro, de acordo com a docente, veio de seu interesse pessoal na permeabilidade entre o externo e o interno. “Nesse livro, eu estudo o Regulamento Sanitário Internacional, cuja nova versão data de 2005, e que foi aplicado pela primeira vez durante a pandemia de gripe A ocorrida entre 2009 e 2010”, situa Deisy.

O livro analisa o processo de tomada de decisões pela OMS que resultou na declaração da primeira emergência de saúde pública de importância internacional. A classificação de emergência sanitária não diz respeito exclusivamente às doenças, mas a qualquer agravo à saúde que corresponda às descrições do regulamento de 2005. Para compor o estudo, Deisy realizou durante um semestre pesquisas no Instituto de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra, Suíça – também sede da OMS.

Relações estabelecidas com a OMS

 Fundada em 1948, a OMS é financiada pelos Estados-membros, mas igualmente por  doadores privados. Atualmente, as contribuições dos Estados constituem menos de 20% das  receitas fixas da organização. Os 80% restantes vêm de contribuições voluntárias de alguns  Estados que desejam financiar iniciativas específicas, como os programas de combate às  doenças que eles consideram mais importantes, e também de fundações filantrópicas e do  setor privado – inclusive laboratórios farmacêuticos. No biênio 2010-2011, por exemplo,  a Fundação Bill e Melinda Gates foi a maior doadora voluntária de fundos à OMS (cerca de  446 milhões de dólares), ultrapassando até mesmo as contribuições voluntárias dos Estados  Unidos (aproximadamente 438 milhões de dólares).

Na sua conclusão sobre o estudo da Gripe A (H1N1), Deisy concluiu que a OMS cedeu às pressões das indústria farmacêutica, embora o tenha feito de modo muito sofisticado, já que não se valeu da corrupção ou da influência explícita, mas sim da influência dos especialistas da OMS que possuem vínculos com o setor privado. Contudo, “se por um lado fica evidente a influência que o setor privado exerce dentro da OMS, por outro, a Organização tem uma importância fundamental na comunicação e na disseminação de conhecimento científico em saúde pelo mundo”, comenta Deisy.

Se por um lado fica evidente a influência que o setor privado exerce dentro da OMS, por outro, a Organização tem uma importância fundamental na disseminação de conhecimento em saúde pelo mundo.

Sem intenções de desgastar a imagem da Organização, a professora ressalta o quanto o Regulamento Sanitário Internacional é crucial para a governança da saúde pública, uma vez que é um instrumento dos Estados. “A minha preocupação é que quando tivermos, de fato, um evento gravíssimo, como uma pandemia com alto grau de contágio e de mortalidade, a Organização se encontre desgastada por esse episódio”, revela.

Uma das soluções apontadas pela autora reside na responsabilidade do Estado em promover a formação de especialistas, além da pesquisa em desenvolvimento na área da saúde e de medicamentos. “É necessário que as instituições públicas formem especialistas independentes”, afirma Deisy. “É natural que a indústria privada financie pesquisas que são de seu interesse, numa lógica de mercado. Cabe ao Estado obrigá-la a financiar a pesquisa sobre as doenças que são negligenciadas”, completa.

Como classificar o que é doença?

 Como pano de fundo do debate sobre pandemias, aparecem questões como a  mercantilização da saúde e a normalização dos seres humanos. Classificar o que é doença  interfere não somente no âmbito sanitário, mas também na realidade e nas ideologias  políticas e econômicas. Para Deisy, definir o que é doença é um processo social, não um  processo técnico. A sociedade se vale desse instrumento que de algum modo identifica o que  é “ser normal e ser saudável”, censurando aqueles que não estão dentro desses limites  comportamentais pré-estabelecidos. “É a expressão da mercantilização da vida, da  transformação da saúde em mercado e a necessidade de vender remédios e padronizar o  seres humanos”, argumenta. Isso acaba por gerar estigmas sociais que causam grande  sofrimento às pessoas que possuem essas características.

É natural que a indústria privada financie pesquisas que são de seu interesse, numa lógica de mercado. Cabe ao Estado obrigá-la a financiar a pesquisa sobre as doenças que são negligenciadas.

No entanto, as verdadeiras pandemias exigem dos Estados um grande investimento em medicamentos, vacinas, comunicação e também de regulamentação. Deisy chama a atenção para os problemas sociais que uma contaminação em massa pode causar. Isso porque, no momento de uma pandemia, cresce o medo e – infelizmente – aquelas pessoas que já são vítimas da desigualdade social terão essa desigualdade potencializada durante a crise sanitária. “A crise sanitária não será igual para todos, porque, mesmo que o vírus mate tanto ricos e pobres, o modo de relacionar-se com a doença é totalmente diferente para as pessoas que possuem acesso ao tratamento e a boas condições de moradia, alimentação, etc. ”, alerta Deisy.

No momento de uma pandemia, cresce o medo e aquelas pessoas que já são vítimas da desigualdade social terão essa desigualdade potencializada.

Por fim, ela destaca a importância de regulamentar as crises sanitárias, pois a legislação brasileira ainda é muito deficiente no que se refere a aspectos importantes, tais como as restrições de direitos fundamentais: tratamentos obrigatórios, medidas de isolamento, restrições à liberdade de reunião, fechamento de fronteiras, entre outros. Nada pior do que regulamentar uma crise durante a própria crise, em meio ao pânico e às diversas pressões. “Não podemos esperar uma nova pandemia para aperfeiçoar a lei brasileira”, conclui a autora.

Direito e Saúde Global – O caso de pandemia da gripe A (H1N1) (2013, Outras Expressões/Expressão Popular) foi lançado no último dia 26 de agosto no IRI, e está à venda pelo site da editora.

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