Lições de paz: Prêmio Nobel fala na USP sobre questão árabe-israelense

Nobel da Paz partilha a experiência do Timor Leste, apontando possíveis saídas para conflitos em outras regiões do mundo.
Foto: Marcos Santos/USP Imagens
O ex-presidente timorense, Nobel da Paz em 1996, José Ramos-Horta

“Se nós nos tivéssemos rendido ao ódio, o mundo nos abandonaria”. Essa é, em suma, a mensagem que o ex-presidente do Timor Leste e prêmio Nobel da Paz, José Ramos-Horta, deixou na aula aberta Perspectivas de Paz para Israelenses e Palestinos, realizada no auditório do Departamento de História na última terça-feira, 1 de outubro. Presentes na mesa, Arlene Clemesha, diretora do Centro de Estudos Árabes da universidade, e Peter Demant, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador do Grupo de Trabalho Oriente Médio e o Mundo Muçulmano, além do mediador das falas, Daniel Douek, também membro do GT.

Atualmente Representante Especial do Secretário-Geral da ONU na Guiné-Bissau, Ramos-Horta esclareceu que não é especialista na região do Oriente Médio, não assumindo, assim, posições apaixonadas por qualquer dos lados do conflito. Para ele, entretanto, sua voz pode se dedicar à tarefa de partilhar a experiência do Timor Leste, apontando possíveis saídas para conflitos em outras regiões do mundo.

Colônia de Portugal até 1975, o Timor Leste é um país predominantemente católico, religião que compreende 97% da sua população. Já seu vizinho, a Indonésia, é o mais populoso país muçulmano do mundo, com 250 milhões de habitantes, de maioria absoluta muçulmana e com uma minoria católica e alguns poucos protestantes, hindus e budistas. O ex-presidente relembrou que, já em 1975, o Timor Leste fora invadido e ocupado pela Indonésia, no auge da Guerra Fria. “Foram 24 anos de resistência para termos direito à livre auto-determinação, que veio por meio de um ato referendatário negociado com a Indonésia pela ONU, em um acordo tripartido com Nações Unidas, Portugal e Indonésia”, explicou.

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Platéia lotou auditório do Departamento de História da FFLCH para ouvir a aula aberta

Para chegar a esse momento, ressaltou o Nobel da Paz, foram anos de sacrifícios e inúmeras perdas. As estimativas variam de 100 a 200 mil mortos, dizimados de uma população de menos de um milhão, que morreram, sobretudo, nos cinco primeiros anos de massacre. No que foi descrito muitas vezes pelo crítico Noam Chomsky como um dos maiores genocídos do pós Segunda Guerra Mundial, cerca de um quinto da população timorense foi dizimada. O ex-presidente destacou, no entanto, que a despeito de todo o passado sombrio, hoje o Timor Leste é um grande parceiro da Indonésia, não apenas economicamente, mas também nas relações entre os dois povos.

A superação do passado sangrento desses dois países, diferentes na história e na religião, é a principal lição que o país tem a passar a árabes e israelenses. Para que se possa entender como foi desenvolvida essa relação, Ramos-Horta explica que a população timorense resistiu à tentação fácil de pintar tanto os indonésios quanto os muçulmanos como inimigos. “Nunca a resistência timorense, apesar da barbaridade cometida pelas forças indonésias, que matou milhares de civis, que violou mulheres e que destruiu aldeias, reagiu da mesma forma, atacando populações civis de indonésios. Não houve um único civil indonésio morto pela resistência timorense. Não houve um único militar indonésio capturado pela guerrilha que tenha sido fuzilado.”

Nunca a resistência timorense reagiu da mesma forma, atacando populações civis de indonésios.

Para Ramos-Horta, quando qualquer dos lados de um conflito demoniza o outro, o faz de forma a influenciar várias gerações, resultando em décadas, e até séculos, de ódio e de preconceito. O Timor Leste representa, assim, um exemplo de que “é possível um povo oprimido, ocupado e que resiste a essa ocupação, que resista, também, à tentação do olho por olho e dente por dente”, define o jurista.

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O professor Peter Demant, do GT Oriente Médio e o Mundo Muçulmano

Ao longo da aula, Horta deixou claro seu posicionamento de que não há receitas que se apliquem igualmente a todas as sociedades, e de que cada povo é motivado pelas suas experiências, pelos seus sofrimentos, pelo que ouve e vê. Porém, os povos também são influenciados pelos seus líderes: “os nossos líderes nunca ensinaram o povo do Timor Leste a odiar qualquer outro povo. Nicolau Lobato, o primeiro líder da resistência do Timor Leste, que morreu em combate, foi o primeiro grande mestre dos timorenses na lição de nunca odiar um outro povo. Depois veio Xanana Gusmão, o grande arquiteto da reconciliação nacional e da reconciliação com os indonésios. Xanana é um herói na Indonésia.”

Nossos líderes nunca ensinaram o povo do Timor Leste a odiar qualquer outro povo.

Para dar força ao seu discurso de rechaçar o ódio ao inimigo, postura largamente assumida por países em guerra, Ramos-Horta expôs o contexto ao qual a Indonésia estava submetida no período da ocupação: a Guerra Fria. “Nós rejeitamos as exigências de uma parte da comunidade internacional que queria impor uma tribunal especial para julgar os crimes de guerra no Timor Leste perpetrados pela Indonésia. Xanana Gusmão, eu próprio e outros rejeitamos. Dissemos que a Indonésia foi, também, vítima da Guerra Fria. E milhões de seres humanos em todo o mundo foram vítimas dessa guerra”. O ex-presidente lembra que, na ocasião, alguns líderes no terceiro mundo, equivocadamente, alinharam-se à doutrina da Guerra Fria e levaram os povos a tomarem partido, de um lado ou de outro.

Foto: Marcos Santos / USP Imagens
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Professora Arlene Clemesha, do Centro de Estudos Árabes

“Foi o raciocínio irracional da Guerra Fria que levou a Indonésia a invadir o Timor Leste, e com armas americanas. 90% das armas usadas no Timor Leste, ao longo de toda a ocupação, foram fornecidas pelos Estados Unidos e pela Inglaterra. Como vamos julgar a Indonésia, país de terceiro mundo, mas não podemos julgar as superpotências?”, questiona.

A vitória sobre a Indonésia, nesse sentido, foi política: aconteceu somente quando esta se libertou da sua própria ditadura militar. A independência do Timor Leste veio, então, por meios políticos e democráticos, não sendo racional para o ex-presidente, investidas militares, e nem posturas de ódio a grupos nacionais e grupos religiosos.

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