Professores da USP defendem direito às biografias não-autorizadas

Pesquisadores da USP se posicionam sobre o projeto de lei que libera biografias sem a autorização da pessoa biografada ou da família.

Leila Kiyomura/ Jornal da USP

Quando viu a estudante de Arquitetura querendo pesquisar a sua vida e obra, Anita Malfatti, na fragilidade de seus 75 anos, ficou feliz. Mandou a jovem Marta entrar. E foi contando a sua história. A estudante anotava rapidamente. A artista observou: “Você tem uma letra muito bonita, parece que está desenhando, e é canhota como eu. Só que eu sou uma canhota forçada”, brincou Anita. Poucos meses depois, a artista morreu, deixando a sua história nas mãos da estudante. Quarenta anos depois, Marta Rossetti Batista, professora e pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, continuava pesquisando e divulgando a vida e a obra da artista.

Marta morreu no dia 31 de maio de 2007, às vésperas de o seu último livro, Anita Malfatti no Tempo e no Espaço, da Editora da USP (Edusp), ser escolhido para receber o Prêmio Jabuti de melhor biografia. Como Marta, outros pesquisadores de universidades de todo o País vêm contando a história de pintores, poetas, músicos, políticos e cientistas. Biografias que documentam a história e a cultura brasileira.

Diante da importância desse trabalho, Francisco Alambert, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, se posiciona na polêmica gerada pelo projeto de lei que libera biografias sem a autorização da pessoa biografada ou da família. “O debate tem se colocado em um nível muito ruim. Basicamente, fica em torno de querer se saber de quem é a vida, afinal, e do movimento autointitulado Procure Saber, no desejo de controlar, sobretudo financeiramente, os direitos sobre os relatos de sua vida. Mas biografia não é simplesmente uma mercadoria.”

Alambert salienta que a biografia diz respeito ao direito e dever de se estudar e explicar o passado e o presente através do estudo documentado de ações ou de personagens que os historiadores considerem importantes. “Não é questão de justiça, muito menos de criminalização. Essa mercantilização da história é grave.”

Censura

Sandra Reimão, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, cita a Constituição de 1988, que estabeleceu o fim da censura aos livros, às artes e aos meios de comunicação. “O artigo 5º, inciso IX, deixa claro que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, observa. “No mesmo sentido, no artigo 220, 2º parágrafo, no capítulo reservado à comunicação social, afirma-se: ‘É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.’”

Autora do livro Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura Militar, lançado pela Edusp e pela Fapesp, Sandra argumenta: “Qualquer verificação prévia que possa implicar alguma coação não tem outro nome: é censura”. Sandra acompanha decepcionada os artistas na defesa de ações de censura em nome de uma suposta privacidade. “Mais decepcionante ainda é ver o espírito autoritário e elitista presente na argumentação do grupo Procure Saber, como, por exemplo, tentar separar categorias de pessoas públicas entre artistas e não artistas. Ou seja, uma argumentação pré-republicana. A existência de uma instância censória prévia é uma violência à circulação da informação, à construção de uma cultura e ao exercício da cidadania.”

O projeto de lei de autoria do deputado Newton Lima (PT-SP) deveria ter sido votado no dia 23 de outubro. Mas, diante das polêmicas, a Câmara dos Deputados vai instaurar uma comissão para avaliar o tema. Enquanto as regras não mudam, a Edusp continua, como observa o presidente Plínio Martins Filho, atenta aos direitos autorais. “Os artistas estão provocando uma polêmica exagerada. Mesmo porque eles podem contestar, têm leis que os protegem. Mas eu, como editor, não publicaria biografias de personalidades que a mídia enaltece. Não temos espaço para esse tipo de literatura com apelos comerciais.”

Martins explica que o direito aos textos e imagens prejudica a edição. “Vários autores desistem da publicação. Há uma exigência econômica por parte dos herdeiros que inviabiliza a publicação. Muitas vezes, não conseguem autorização para transcrever depoimentos ou poemas, só podem utilizar pequenos trechos, e isso empobrece o trabalho.”

Na avaliação de Lisbeth Rebollo, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), as regras para as biografias sempre foram muito discutidas. “Agora, todas essas questões eclodem diante do sentido mercadológico que está sendo atribuído às biografias. É um jeito muito rápido de trabalhar. Não se pode escrever a partir das próprias impressões, é preciso pesquisar documentos, levantar dados, depoimentos.”

Lisbeth orienta por experiência própria. Há décadas vem se dedicando à vida e à obra do pintor Aldo Bonadei. “O autor deve ter toda liberdade de conduzir a sua pesquisa, mas deve estar atento para ouvir as pessoas envolvidas. Uma biografia não pode ser feita a toque de caixa. Creio que seria importante se esse projeto de lei normatizasse o que é de direito para o autor e para o biografado e sua família, estabelecendo uma definição clara de critérios.”

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