Grupo reflete sobre poder persuasivo do discurso religioso

Durante evento, especialistas discutem sobre discursos psicológicos através de diferentes pontos de vista.

Embora as religiões sejam, muitas vezes, contestadas e acusadas de fundamentalismo ou irracionalidade, o mundo nunca foi tão crente: segundo relatório do Center for the Study of Global Christianity, ligado à Universidade de South Hamilton, em Massachusetts, nos Estados Unidos, em 2013, 88% das pessoas do planeta se declararam adeptas de algum culto religioso. Mas o que leva as religiões a angariarem tantos seguidores? Que elementos textuais estão presentes em suas doutrinas? Visando a analisar o discurso religioso e suas particularidades, o Grupo de Estudos de Retórica e Argumentação (Gerar) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP organizou no dia 14 passado o seminário Discurso Religioso: Possibilidades Retórico-Argumentativas.

O evento constituiu uma das duas jornadas anuais do Gerar. “Já tivemos jornadas sobre discurso jurídico e educacional, e agora fizemos esta voltada ao religioso”, conta a professora Lineide Mosca, coordenadora e fundadora do grupo.

Na abertura da jornada, o professor Antonio Boeing, das Faculdades Integradas Claretianas – que sediaram o evento –, ressaltou a importância da discussão sobre o tema, apontando o status científico dos estudos religiosos. “Qualquer debate nessa área ajuda no trabalho científico do campo religioso, de modo que a religião não sirva para incentivar ideias fundamentalistas ou sectárias”, disse.

Foto: Cecília Bastos
Foto: Cecília Bastos

Para a professora Lineide, o discurso religioso, assim como qualquer discurso, possui aspectos não-racionais, subjetivos. “Todo discurso tem uma parcela dessa subjetividade.” Ainda assim, a pesquisadora reitera que mesmo os elementos mais subjetivos devem se mostrar razoáveis para convencer o ouvinte. “Há sempre um lado emocional que é parte integrante do racional também”, afirma.

No evento, o professor Paulo Augusto de Souza Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), discorreu sobre os aspectos semióticos das doutrinas religiosas, destacando que a religião representa um novo sistema de linguagem. “A religião cria seus próprios conceitos e se torna uma segunda linguagem que molda o mundo”, argumenta. Nogueira comparou o discurso religioso a temáticas culturais como cinema, teatro e poesia, que também têm status de linguagem. Ele explicou que, uma vez atingido esse status, o discurso religioso ganha o poder de articular e moldar a visão das pessoas. O pesquisador criticou o mau uso desse poderio. “Pode-se usar a vitória de um determinado rei de Israel como metáfora para a vitória a partir do depósito em uma conta bancária. Isso é muito grave”, disse.

Estado laico

Foto: Divulgação
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O evento também contou com reflexões sobre a questão do laico, aquilo que não é religioso. “Só se entende religiosidade se for contraposta à ideia de laicidade”, explica a professora Lineide. “Uma ideia define a outra.” O professor Ricardo Mariano, do Departamento de Sociologia da FFLCH, comentou os recentes embates entre laicidade e religião em questões polêmicas como aborto, homofobia, união civil de homossexuais e uso de células-tronco. “Os religiosos procuram legitimar a ocupação religiosa do espaço público e da esfera pública”, apontou Mariano. “Já os grupos seculares defendem a rigorosa separação entre Estado e igrejas.”

A religião cria seus próprios conceitos e se torna uma segunda linguagem que molda o mundo.

Atualmente, um dos principais conflitos entre grupos seculares e religiosos diz respeito ao ativismo eleitoral de líderes religiosos. No Congresso Nacional brasileiro, por exemplo, 75 deputados e três senadores são evangélicos. Seguindo essa linha, o professor Isaar Soares de Carvalho, doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), comentou sobre a relação entre religião e Estado, mostrando como aspectos do discurso religioso podem ser usados como forma de legitimação do poder. Ele exemplificou destacando o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), que busca nas Escrituras bíblicas argumentos que validem o absolutismo.

Ainda sobre a ligação entre o discurso religioso e o político, o professor Paulo Proença, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), apontou os aspectos deliberativos presentes em ambos os discursos. O pesquisador comparou textos bíblicos ao conto Teoria do Medalhão, do escritor Machado de Assis. Na história de Machado, um pai aconselha o filho a se utilizar da neutralidade para tornar-se bem-sucedido. O jovem deveria, assim, anular seus gostos e opiniões pessoais. Da mesma forma, tanto os textos bíblicos como a política pregam que as ações devem ser voltadas não para o prazer individual, mas para o bem de todos. “A política aqui é vista na acepção grega, com a polis, os debates em público”, explica a professora Lineide. “É aí que política e religião dialogam, junto com o discurso institucional e o Estado.”

Convencimento

É inegável, portanto, que o discurso religioso tem uma grande capacidade de persuasão, e um dos aspectos responsáveis por isso pode ser a facilidade de compreensão das doutrinas. O professor Francisco Leite, membro do Gerar, comentou sobre os diversos gêneros textuais utilizados nos Evangelhos, como parábolas e provérbios. A variedade de gêneros acaba também facilitando o entendimento do público, muitas vezes heterogêneo e com graus variados de instrução.

Foto: Divulgação
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A comparação entre literatura e textos bíblicos também foi feita pelo professor Ricardo Wotckoski, do Centro Universitário Claretiano, que apontou as semelhanças entre as histórias da vida de Jesus e o gênero biográfico. O pesquisador afirmou que, anteriormente, tinha-se uma visão das histórias bíblicas como um gênero particular. Agora, porém, percebe-se que os traços de gênero biográfico estão muito presentes nas narrativas da trajetória de Jesus. “Com sua natureza flexível, adaptável e dialógica, a biografia greco-romana apresenta uma sequência próxima dos Evangelhos”, explicou Wotckoski.

Além da necessidade de compreensão por parte do auditório, uma série de outros fatores pode influenciar o discurso. O professor João Cesário Ferreira, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, abordou a questão do contexto em que ocorre a fala, apontando elementos como a gestualidade, a expressão, a mímica e a movimentação em cena. “Tudo isso faz parte desse cenário de construção do sentido, baseando-se na ideia da ação, da experiência”, diz a professora Lineide.

Contudo, a coordenadora do Gerar ressalta que todos esses recursos são apenas o primeiro passo: para que a mensagem do pregador contagie de fato o público, este deve, antes de tudo, ser receptivo ao que está sendo dito. “Em qualquer tipo de discurso, toda a estratégia é feita no sentido de que o receptor aceite. Mesmo no discurso da ciência, o cientista tem de convencer seus pares”, diz.

Para a professora Lineide, o auditório é um dos aspectos mais importantes da pregação. “O auditório é uma peça sem a qual não há nenhum discurso”, afirma. A pesquisadora aponta nomes como Padre Vieira e Santo Agostinho, grandes pregadores que possuíam o dom de contagiar os ouvintes utilizando-se da retórica e também dos recursos da ação. “Às vezes eles falavam para auditórios enormes, que não eram específicos. Mas, com aquela fala, atingiam várias faixas da população.”

Santo Agostinho foi tema da fala do professor Paulo Rocha, da Fundação Mokiti Okada (FMO). O pesquisador apontou como a retórica viveu duas fases diferentes na trajetória do santo católico: tida como essencial para a busca da verdade num primeiro momento, Agostinho depois passou a enxergá-la como ferramenta de dissimulação, escondida por detrás da eloquência. Agostinho defende, assim, que os temas devem ser debatidos, mas sem que o discurso sozinho crie o que é certo e errado. “Ele queria fugir daquela ideia maniqueísta de separar as coisas categoricamente”, afirma a professora Lineide. “Temos então essa ideia da retórica que pode ser enganosa, levando a uma persuasão questionável.”

Ornato

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

A coordenadora do Gerar também aponta que, muitas vezes, o senso comum enxerga a retórica apenas como sinônimo de belos discursos e de falas difíceis, o que é uma visão errônea. “Houve uma época em que a retórica ficou confinada ao discurso de ornato, de enfeite. Mas não lidamos mais com essa ideia de retórica como artifícios e discurso vazio”, diz. Ela explica que a retórica é sempre usada com um objetivo. “Quem fala quer alcançar seus propósitos, e a partir daí vai escolher os recursos apropriados para soar convincente”, afirma.

A pesquisadora lembra que nem sempre a fala atinge completamente seu objetivo. “Quando a gente fala de retórica, fala de convencimento e persuasão. Você pode convencer, mas pode não ter conseguido persuadir”, avalia. “Persuasão é quase sinônimo de adesão.” No que diz respeito ao discurso religioso, ela ressalta que as doutrinas, na tentativa de convencer os ouvintes, não trabalham apenas no sentido de agregar seguidores. “O pregador tem essa convicção de que o que prega é bom para todos.”

Num mundo em que qualquer tema está sempre em constante debate, a professora aponta que a retórica e a argumentação são elementos essenciais para a construção de opiniões e a saudável troca de ideias. “A retórica é uma forma de construção do mundo”, completa. “Todas as questões são polêmicas. Então o lugar próprio da argumentação é o lugar da controvérsia, porque onde há consenso absoluto não há necessidade de argumentação.”

Carolina Oliveira / Jornal da USP

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