Há 40 anos, morte de Vlado marcava o início do fim da ditadura

O prêmio Vladimir Herzog reconhece jornalistas e seus trabalhos voltados à promoção da democracia, cidadania e diretos humanos e sociais.

Professores, ex-alunos e profissionais contemporâneos do jornalista – professor da ECA na época – relembram a tensão do período

O dia 25 de outubro marcará os 40 anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que foi assassinado pelos agentes da ditadura em 1975. A vida e a morte de um dos jornalistas mais importantes para a história recente do Brasil também teve seus desdobramentos na USP, onde Vlado (seu nome verdadeiro) foi professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) por um breve período antes de ser assassinado.

A ida de Herzog para a ECA ocorreu devido à saída de vários professores, no primeiro semestre de 1975: Sinval Medina, coordenador do curso de Editoração, havia sido reprovado, de forma arbitrária, em seu exame de qualificação para o mestrado, o que o levou a perder o cargo de professor. Em solidariedade, outros professores pediram demissão em maio do mesmo ano: Cremilda Medina (esposa de Sinval), Paulo Roberto Leandro e Walter Sampaio (então chefe do Departamento). Mas o desfalque era ainda maior, visto que outros professores já haviam sido cassados e deixaram a ECA, entre eles Jair Borin, Thomas Farkas e José Marques de Melo.

A demissão dos professores provocou a revolta dos alunos da ECA. Eles chamaram o episódio de “Delito Medina”. Entraram em greve e exigiram a renúncia do então diretor, Manuel Nunes Dias. A paralisação acabou se estendendo por toda a Universidade. Foi a primeira greve de alunos desde 1968 e durou até agosto daquele 1975. Por conta disso, o jornal O Estado de S.Paulo publicou um editorial em que responsabiliza os “professores subversivos da ECA” pela situação.

Essa falta de docentes motivou a jornalista Dilea Frate, então aluna da pós-graduação, a sugerir o nome de Vlado para a professora Gisela Ortriwano. Ela, por sua vez, o indicou ao professor José Coelho Sobrinho, que apresentou e defendeu o currículo de Vlado ao Conselho de Graduação. A partir daí, Herzog passou a ser professor voluntário do Departamento de Jornalismo e Editoraçao (CJE).

“Eu era uma aluna muito atuante na ECA, representante de turma e conhecia o diretor Manuel Nunes Dias. Também conhecia o Vlado, pois na época era casada com o Paulo Markun [jornalista] e eles trabalhavam juntos na TV Cultura”, relata Dilea. A área de telejornalismo, de acordo com a jornalista, estava aflorando com importância no Brasil. “Vlado era um entusiasta dessa área, mais do que qualquer outro professor que a gente conhecia”, lembra. Ela ia iniciar o mestrado e entrou na ECA de modo informal. “A gente começava a dar aulas e esperava a contratação. Muitos professores ficavam sem receber durante esse período. A contratação não era como é feita hoje”, explica. Dilea ficou responsável pela Agência Universitária de Notícias (AUN) e Vlado com a disciplina de Telejornalismo.

Mas eles não tiveram muito tempo para exercer a profissão de professores na ECA e ministraram poucas aulas. O clima de insegurança e perseguições no País era evidente e o jornalista tinha consciência dos riscos que corria conforme ele relatou em conversa com a professora Alice Mitika Koshiyama, também professora da ECA, na mesma semana da sua prisão e morte.

Foto: Divulgação
Ida de Herzog para a ECA ocorreu devido à saída de vários professores, no primeiro semestre de 1975 | Foto: Divulgação

Dias de tensão

“Tivemos uma conversa muito marcante durante um café na segunda-feira que antecedeu a morte dele [Vlado foi morto num sábado]”, relata Alice. Ele contou que sabia da existência de uma lista de pessoas que seriam detidas para um interrogatório no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna [DOI-CODI] e que ele ficou sabendo que estava entre os que seriam detidos. Alice disse a ele: “Você vai ficar assim, exposto? Não vai fazer nada? Você pode ir para algum lugar, tirar umas férias, um descanso”. Mas Herzog respondeu que não podia fazer isso, porque estava ocupando o cargo de diretor de telejornalismo da TV Cultura. Era um cargo de confiança, indicado pelo Secretário de Estado de Educação, José Mindlin, que, por sua vez, era indicado pelo governador Paulo Egidio, este, pessoa de confiança do presidente Ernesto Geisel. “Herzog contou que estava havendo um enfrentamento muito forte quanto a qualquer possibilidade de abertura política pela ação da linha dura das Forças Armadas: “Se eu fugir”, disse o jornalista, “vai parecer que eu sou culpado, e vou atrair a suspeita contra o secretário da Cultura, contra o governador. Até porque eu não fiz nada que possa ser objeto de condenação”, disse ele a Alice.

A professora destaca que ficou muito preocupada “porque às vezes vale a pena a pessoa tomar algumas medidas”, mas não acreditava que os militares iriam “quebrar tudo e tal”. “Mas era uma visão subjetiva minha. Eu não acreditava que eles fossem matar alguém. Eu falei isso e ficou por isso mesmo.”

O relato de Dilea Frate reforça esse clima tenso que antecedeu o 25 de outubro de 1975. “Eu fui presa com o Paulo Markun na sexta-feira, 17 de outubro, e o meu aniversário e o batizado da minha filha eram no domingo, dia 19. Eu ficava falando para os militares, como se fosse um mantra, que eu era católica, que aquilo era um engano, e que eu acreditava em Deus tanto que iria batizar a minha filha no domingo.”

No domingo, por volta das 10 horas, os militares levaram Dilea até a Igreja onde ocorreria o batizado. “Eles chamavam isso de ‘diligência’: para verificar se aquilo que foi dito era verdade mesmo”, explica. Apesar das prisões, a mãe de Dilea não desmarcou o batizado, mesmo porque o padre, o Frei Clarencio Neotti, estava vindo de Santa Catarina para São Paulo. Após o batizado, o pai de Dilea convidou os militares que a acompanhavam para irem ao almoço de batizado. “Eles foram!. Isso foi surealista!”, destaca.

Isso foi exatamente uma semana antes de Herzog ser assassinado. Durante o almoço de batizado, Paulo Markun entregou ao pai uma lista com os nomes das pessoas que foram citadas durante os interrogatórios e Vlado era um deles. “Nós demos a orientação para ele não tentar ser corajoso e sim fugir, porque a barra estava muito pesada e não era apenas com a gente. Estava acontecendo alguma coisa muito pesada, além de nós. Era uma tentativa de golpe dentro do golpe: a ala mais radical do exército estava tentando dar um golpe no exército e nós éramos instrumentos desse golpe”, conta.

A prisão de Dilea Frate teve consequências muito sérias para a sua vida profissional. Ela foi demitida por justa causa do seu emprego na Revista da antiga Telesp (Telecomunicações de São Paulo S/A) e teve que encerrar sua então iniciada carreira acadêmica. O diretor da ECA a chamou em sua sala e disse que Dilea era uma decepção por ter sido presa. Teve de ouvir um: “Nunca mais coloque os seus pés na USP”.

Primeira bomba que cai na minha cabeça

Foto: Divulgação
Cremilda Medina: “ele reconhecia em mim uma experiência, pois muitos dos jornalistas que foram com ele para a TV Cultura eram do jornalismo impresso” | Foto: Divulgação

Após pedir demissão, Cremilda Medina foi trabalhar na TV Cultura a convite de Walter Sampaio. “Eu era professora de Teoria e Prática da Grande Reportagem. Fui trabalhar como editora de matérias especiais, a chamada pauta especial do dia. Produzia documentários de 8 a 10 minutos que eram exibidos diariamente”, recorda.

O encontro dela com Vlado ocorreria nos meses seguintes. Walter Sampaio foi demitido do cargo de diretor da TV Cultura e quem ocupou o lugar dele foi Vladimir Herzog. “Com a mudança de gestão, Vlado me pediu para assumir a Editoria Nacional”, conta Cremilda. Vlado havia trabalhado na BBC, de Londres, e trouxe uma nova proposta, com o uso de alguns documentários produzidos pela emissora inglesa. Um deles abordava a atuação dos Viet Kongs, na Guerra do Vietnã. Ao ser editado e colocado no ar, o documentário provocou a ira de alguns setores da ditadura. “Havia um certo jornalista que escrevia e atacava, em suas notas, a TV Cultura, e ele passou a chamá-la de VietCultura”, lembra a professora.

No início de outubro, Vlado encaminhou ao Palácio do Governo uma recomendação para Cremilda receber uma promoção salarial. “Era uma promoção maravilhosa para mim”, recorda a docente. Cremilda foi chamada à sala de Vlado cerca de uma semana antes de ele ser assassinado. Ele disse que o Palácio dos Bandeirantes havia exigido a demissão dela. A professora lembra que foi uma conversa muito traumática, pois Vlado quis saber tudo o que tinha acontecido antes da entrada dela na TV Cultura. Ela então explicou os fatos ocorridos na ECA, no primeiro semestre: o “Delito Medina” e o editorial do Estadão.

“O que ele disse depois foi uma coisa que eu nunca mais vou esquecer. Com um ar de desânimo, ele falou que não tinha o que fazer em relação a minha demissão. Eu respondi: ‘Não se preocupe, pois já passei por outras e que passaria por mais essa’. Ele respondeu: ‘Eu pressinto que essa é a primeira bomba que cai na minha cabeça antes de outras piores’. Na semana seguinte, Vlado estava morto.”

Entre a saída da Cultura e o dia da morte do Vlado, Cremilda ficou completamente “à deriva”. “Todos os meus colegas tinham ido ao enterro. Mas eu só pude reestabelecer forças para ir à missa de sétimo dia, na Catedral da Sé. Os militares colocaram o nome de Operação Gutemberg, na tentativa de impedir que as pessoas conseguissem chegar até a Igreja. Mas mesmo com a presença maciça de militares com metralhadoras em punho, a Catedral ficou lotada.

“A morte do Vlado é um marco, não só pela dramaticidade, mas porque naquele ato, uma semana depois, na Praça da Sé, o mundo todo percebeu que a ditadura estava com a corda no pescoço diante da mobilização popular. Tinha tanta gente que eu não consegui entrar na igreja, fiquei fora onde o que se via eram dezenas de metralhadoras apontadas para nós.”

De acordo com a professora, a relação com Vlado sempre foi muito profissional. “Ele reconhecia em mim uma experiência, pois muitos dos jornalistas que foram com ele para a TV Cultura eram do jornalismo impresso. A minha experiência não era muito longa como a do Walter Sampaio, mas além de trabalhar na TV Cultura, eu já havia trabalhado na TV Bandeirantes. Eu tinha me afeiçoado ao telejornalismo. A edição de documentários diários com 8, 10 minutos ao dia me deu uma escola, um traquejo com o processo de edição que o Vlado prezou muito. Apesar de ter substituído muitos quadros, ele me manteve na equipe como editora nacional”, explica.

Para Cremilda, esses episódios de 1975 fazem parte de um pedaço da História do Brasil muito mal contado. “Tivemos meses de convivência, algo muito profissional. Éramos de uma geração que estava em confronto com a ditadura e com todo o descalabro do autoritarismo. Eu estava construindo no jornalismo a teoria da reportagem, que vai culminar, posteriormente, com esse campo das narrativas da contemporaneidade, disciplina que ofereço hoje na ECA. O Vlado era um profissional que tinha a BBC por trás, uma escola de jornalismo muito respeitada, que preza pelo rigor da informação”, conta. Na TV Cultura, esclarece ela, eram realizadas reuniões de pauta diárias em um ambiente bastante democrático e sem grupos de confrontação com a ditadura. “Éramos jornalistas querendo trabalhar e conscientes de que realmente estávamos responsáveis por informações cerceadas pela ditadura.”

Para o jornalista Gabriel Priolli, Herzog foi, ao mesmo tempo, professor e chefe: teve aulas com ele na ECA e foi seu subordinado na TV Cultura. Em um texto que escreveu, há alguns anos, para o jornal Diário de S.Paulo, Priolli conta que “não estranhou quando Vlado o chamou a sua sala, no início da noite de 24 de outubro para dizer que a situação estava se agravando e poderia atingi-lo. “Posso ser preso a qualquer momento, então pegue aqui os trabalhos da sua turma e devolva aos seus colegas”, ele me pediu. “Quando as coisas se acalmarem, a gente vê como faz a avaliação do curso”. Apanhei o pacote, desejei boa sorte a ele e fui embora, direto da redação para Ilhabela, onde passei o final de semana distante de telefone e qualquer meio de informação”, diz o texto. Priolli relata que somente soube da morte na segunda-feira, ao chegar na USP e se deparar com a enorme faixa: Mataram Vlado!

A prisão e a morte de Vlado também tiveram outros desdobramentos na ECA. Sua rápida passagem pela USP trouxe uma polêmica: o nome de Herzog teria ou não sido suprimido do registro de atividades acadêmicas da Escola de Comunicações e Artes, no ano de 1975? Esse tema foi tratado na edição de outubro de 2012 da Revista da Adusp (Associação dos Docentes da USP), com o texto ECA de Manuel Dias e Helda Barracco apagou os vestígios de Herzog, de autoria da jornalista Beatriz Vicentini.

A reportagem cita o artigo “A prática política para ser jornalista”, em que a professora Alice Mitika relata o que aconteceu no Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, naquele segundo semestre. “Colocamos o nome de Vladimir Herzog no rascunho do ‘Relatório de Atividades de 1975’ mas o nome dele foi suprimido do texto ‘oficial’, por ordem da chefe, professora doutora Helda Bullotta Barracco, que arbitrariamente se recusou a ouvir quaisquer protestos, alegando ordens superiores… Todas as pessoas do corpo docente (efetivos, contratados, à espera de contratos e voluntários), exceto Herzog, figuraram no Relatório”.

Ainda, de acordo com a reportagem: “Documentos comprovam o registro de Alice, até hoje docente do mesmo departamento. Em 13 de agosto de 2012, o diretor da ECA, Mauro Wilton de Souza, em resposta a pedido de informações sobre os docentes que ministraram disciplinas no Departamento de Jornalismo em 1975 e 1976, encaminhou cópia daquele relatório, à qual faltam algumas páginas se considerada a lógica da numeração dos itens. Em seguida a uma listagem de 39 nomes datilografados à máquina e com a devida identificação da categoria a qual pertenciam como docentes, aparece, escrito à mão, o nome “Wladimir Herzog” (grafado assim, com W). O procedimento se repete na relação de professores e respectivas disciplinas. Em Jornalismo Televisionado, oferecido ao 7º semestre, aparece à máquina o nome de Gisela Swetlana Ortriwano e, de forma manuscrita, “W. Herzog”.

Dilea Frate lembra que, apesar de a história da passagem de Herzog ter sido contada na reportagem publicada na Revista da Adusp, a maioria das pessoas da Universidade de São Paulo desconhece esses fatos. “A própria USP tentou apagar tudo isso, então parece que não aconteceu. Você pode levantar essa história até na documentação e ver a coisa mal apagada, riscada, os nomes riscados”, destaca.

Para a jornalista é importante que essa história seja contada. “A gente era expulso por medo, porque nada era oficial. Você era expulso porque era um medo tão grande que você acabava indo embora e dava graças a Deus por não ter acontecido algo ruim”, revela. “Também é importante saber que aquelas pessoas não eram boazinhas, e que as coisas não eram veladas. Mas nada era oficial, eles não assumiam. Eles pegavam você pessoalmente e não havia celular, não tinha como gravar. Então eles falavam na cara: Sai daqui, desaparece!.”

Vocês sabem quem foi Herzog? Não…

Foto: Divulgação
José Coelho Sobrinho: “Falta alguma coisa na estrutura curricular que fale mais sobre a nossa profissão” | Foto: Divulgação

O professor José Coelho Sobrinho conta que, atualmente, a sala de computadores do CJE tem o nome de “Redação Vladimir Herzog”, em homenagem ao jornalista. O docente revela que fica sentido quando pergunta aos alunos de jornalismo que acabaram de ingressar na ECA se eles sabem quem foi Vladimir Herzog e ouve um “não” como resposta. “Aí eu pergunto: vocês sabem que ele foi o divisor de águas entre a ditadura e o final desse período? Que foi a partir dele que a ditadura começou a ruir? A resposta é não”, lamenta.

Para o professor, se a pessoa não sabe nada a respeito do jornalista mais importante para a história recente do País, é porque deve ter algo muito errado na estrutura curricular. “Imagina então se a gente perguntar da ABI [Associação Brasileira de Imprensa]. Acho que falta alguma coisa na estrutura curricular que fale mais sobre a nossa profissão e sobre as pessoas que fizeram essa profissão e como ela é importante para a democracia do Pais.”

Prêmio Vladimir Herzog

Nesta terça-feira (20), às 20 horas, acontecerá a premiação a jornalistas que participaram da 37ª edição do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. A cerimônia terá lugar no auditório do Teatro da Universidade Católica (TUCA), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

O prêmio, que teve sua primeira edição em 1978, é um dos mais antigos do Brasil, e continua vinculado à luta pelos Direitos Humanos e Cidadania, sem envolvimento de empresas, instituições e segmentos jornalísticos. Anualmente, são premiadas nove categorias: Artes; Fotografia; Jornais; Rádio; Revistas; Internet; TV – Documentário; TV – Jornalismo e Tema Especial.

Roda de Conversa

Ainda como parte da programação, na terça pela manhã, das 9 às 13 horas, acontecerá a 4ª Roda de Conversa com os vencedores desta 37ª edição do prêmio. Para o jornalista Sérgio Gomes, diretor da Oboré, coordenador do Projeto Repórter do Futuro e conselheiro do Instituto Vladimir Herzog, este encontro é uma excelente oportunidade para os estudantes de jornalismo terem um contato mais próximo com profissionais das mídias e saberem mais sobre como se dá a produçao de uma matéria “premiada”.

A Roda de Conversa acontecerá no Tucarena (ao lado do TUCA) e terá transmissão pela internet, por meio do link . O evento gratuito é voltado especialmente para alunos dos cursos de comunicação e tem o propósito de compartilhar conhecimento sobre os métodos e técnicas de algumas reportagens mais importantes da imprensa brasileira.

Hérika Dias e Valéria Dias / Agência USP de Notícias

Mais informações: site http://www.premiovladimirherzog.org.br/o-premio.asp

 

Scroll to top