Na USP, refugiados aprendem geografia do Brasil e encontram apoio para adaptação ao país

Curso oferecido no Departamento de Geografia ajuda refugiados a compreender o novo contexto em que vivem e promove a bolsistas e voluntários a prática da docência.

Curso oferecido no Departamento de Geografia ajuda refugiados a compreender o novo contexto em que vivem e promove a bolsistas e voluntários a prática da docência

Filho de palestinos, Jamal Zaiter viveu a maior parte de sua vida na Síria, onde se formou em química pela Universidade de Damasco. Em consequência da guerra, precisou sair do país, chegando a passar curtos períodos nos Emirados Árabes Unidos e no Líbano, até chegar, no final de 2014, ao Brasil. “Um amigo me ligou, disse que o Brasil concedia vistos para sírios e eu vim. Agora posso trabalhar e estudar, algo que eu não podia fazer nos outros países onde me refugiei”, relata em português ainda um pouco hesitante. Jamal é um dos alunos que, todos os sábados, vêm até o Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP para estudar geografia do Brasil.

Os sírios representam hoje o maior grupo dentro do total de estrangeiros reconhecidos como refugiados pelo governo brasileiro, somando mais de 2 mil pessoas. O perfil dos alunos, no entanto, é bem variado: iniciado em agosto deste ano, o curso teve 63 interessados de 17 nacionalidades diferentes. Além de sírios, frequentam as aulas pessoas da Nigéria, Congo, Camarões, Venezuela, Haiti, Egito, Bolívia e até mesmo do Nepal. O curso é voltado a refugiados, mas acolheu também não refugiados senegaleses. A faixa etária também varia bastante. “Recentemente recebemos uma senhora síria que havia chegado ao Brasil há apenas dois dias. Há também crianças pequenas e de colo e, para atendê-las, os voluntários sempre trazem lápis de cor e brinquedos”. É o que conta o professor Luis Antonio Bittar Venturi, idealizador e coordenador do projeto vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) da USP, que conta com a parceria da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo.

Foto: Luciana Niro
Curso recebe pessoas da Nigéria, Venezuela, Egito, Bolívia, entre outros países | Foto: Luciana Niro

A ideia surgiu durante as aulas de português para refugiados que Venturi ministra como voluntário há cerca de um ano. Lá, percebeu que os alunos tinham poucas noções sobre São Paulo e o Brasil, além do papel do país na América Latina e no mundo, mas se interessavam pelo assunto. “Fiquei muito surpreso com este interesse, porque aprender a geografia do país não é prioridade para quem está passando por dificuldades, para uma pessoa que precisa aprender português e conseguir um emprego, um lugar para morar”. O professor então propôs o projeto à PRCEU, conseguiu três bolsas e passou todo o mês de julho organizando e divulgando o curso na própria Cáritas e em mesquitas da cidade, distribuindo folders em português, francês, inglês e árabe. Para isso, contou também com o apoio de vários voluntários. “Apareceram pessoas da odontologia, da veterinária, das ciências sociais, de relações internacionais e mesmo de fora da USP; atualmente tenho mais voluntários do que bolsistas”, comemora.

Integração

As aulas acontecem todos os sábados pela manhã. Para os bolsistas e voluntários, é uma oportunidade de praticar a docência, ao mesmo tempo em que entram em contato com realidades muito diversas e conhecem um pouco mais da geografia mundial. “O principal desafio, de longe, é se colocar no lugar dos alunos no momento de preparação das aulas. ‘O que é relevante aprender sobre o Brasil na condição de refugiado?’ é uma questão que o grupo enfrenta constantemente”, afirma Luciana Niro de Souza Passos, aluna do primeiro ano do curso de Geografia e uma das bolsistas do projeto.

Churchill Anagbogu | Foto: Aline Naoe
Churchill Anagbogu | Foto: Aline Naoe

Outro desafio mencionado por Luciana é a questão da língua. Na sala de aula, fala-se, principalmente, inglês e francês, mas também se ouve árabe e espanhol. Alguns dos alunos que frequentam as aulas acabaram de chegar ao país e nunca tiveram contato com a língua portuguesa. O nigeriano Churchill Anagbogu, de 48 anos, chegou ao Brasil em maio do ano passado e já compreende um pouco o português, embora ainda ache difícil se expressar no idioma. O curso, conta, além de ajudar a conhecer melhor a geografia e a história do país, tem sido uma oportunidade para praticar a língua e melhorar sua fluência – Churchill já trabalhou como relações públicas e jornalista na Inglaterra e gostaria de trabalhar na área também no Brasil. “E o mais importante, o curso está me ajudando a me relacionar melhor com as pessoas daqui”.

Após a aula, que termina ao meio dia, professores e alunos almoçam juntos no Restaurante Central da USP, cujo valor é custeado pelo Departamento de Geografia da FFLCH. Sempre que possível, a organização do projeto busca também promover programas culturais com os alunos, que já foram à Pinacoteca, ao Instituto Butantan, à praça Benedito Calixto e à Virada Científica da USP. No final do curso, dia 14 de novembro, farão também uma viagem pela pela Baixada Santista, quando poderão conhecer a Serra do Mar e a reserva da biosfera de Mata Atlântica, o complexo petroquímico de Cubatão, o porto de Santos e a orla.

Além da geografia

As dúvidas que surgem após as aulas extrapolam a geografia do Brasil e a língua portuguesa. “Eles nos perguntam muito sobre como funciona o processo de ingresso na universidade no caso deles, também sobre revalidação de diploma, cursos de línguas, tradução de currículos e até mesmo se conhecemos lugares que estão empregando”, exemplifica Luciana Passos. A questão do diploma é uma das principais demandas, pois entre os alunos refugiados há médicos, químicos, farmacêuticos, professores, tradutores, entre outros profissionais com boa formação e que desejam fazer uso dela. A demora no processo e as taxas cobradas para a revalidação do diploma, no entanto, acabam representando um grande obstáculo. “Estamos tentando obter a isenção das taxas junto à Secretaria Geral da USP”, afirma Venturi.

Segundo o professor, alguns dos alunos deixam de frequentar as aulas à medida em que vão conseguindo trabalho, pois passam a ter os sábados ocupados, mas novos alunos estão sempre chegando. “E queremos mais. Se não couber na sala, mudamos para o anfiteatro”, afirma. O coordenador do projeto explica que ao final do semestre será feita uma avaliação geral do curso, repensando o programa das aulas, os horários e organização, além do planejamento da divulgação para o próximo semestre.

Foto: Reprodução
Folder de divulgação do curso em árabe | Foto: Reprodução

Até o momento o curso tem tido uma procura alta e uma repercussão bastante positiva, despertando o interesse de entidades que trabalham com refugiados e voluntários que querem ajudar não apenas com as aulas, mas com os procedimentos necessários para sua nova vida no país. “A realidade no Brasil é um contraponto ao que está acontecendo agora em alguns países europeus, onde os refugiados estão sendo mal-tratados. Aqui, a Cáritas oferece assistência jurídica, psicológica, profissional, auxiliando-os na obtenção de documentos e no acesso aos programas sociais e escolas. O Brasil ainda não tem, talvez, a infraestrutura necessária, especialmente no que se refere a hospedarias e abrigos, mas oferece todo o resto. Só temos a ganhar com isso, cultural, social e economicamente”, pontua.

Inscrições e mais informações

Os interessados em participar do curso, seja como alunos ou voluntários, podem escrever para o email geografia.brasil.usp@gmail.com ou falar com o professor Luis Venturi pelos telefones (11) 3091-0433 / 3769 ou pelo e-mail luisgeo@usp.br. Os alunos que passarem a frequentar o curso agora receberão o material das aulas anteriores. O grupo também divulga notícias e informações relacionadas ao curso e ao tema dos refugiados na página http://www.facebook.com/GeografiaparaRefugiados.

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