4 – De pernas para o ar

O caderno Filho da rua, encartado pelo diário Zero Hora, do Rio Grande do Sul, em sua edição do domingo 17 de junho de 2012, traz a história de um jovem viciado em drogas, acompanhada e narrada pela repórter Letícia Duarte.

Filho da rua terminaria no parto oficial de uma criança sem casa para voltar, sem qualquer vínculo familiar na cidade e preso ao crack, que Felipe começou a usar provavelmente por volta dos oito anos de idade.

A proposta inicial era contar essa história numa reportagem de cinco páginas, mas o então diretor de redação do jornal, Ricardo Stefanelli, sugeriu aprofundar a pesquisa para publicar um dossiê mais amplo.

Quando Letícia mergulhava nessa nova etapa do trabalho, outro fato colocou os planos de pernas para o ar, como faz o Menino Jesus no poema de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa: numa noite de maio, o guri chegou ao Hospital de Pronto Socorro (HPS) coberto de bolhas e foi encaminhado à Unidade de Queimados. A história que contou – do nada, teria sido atacado por dois homens que jogaram álcool em seu corpo e atearam fogo enquanto ele descansava numa estação do trem metropolitano – não pôde ser checada por falta de testemunhas.

No que Letícia chama de “uma demonstração rara de articulação eficiente na rede de assistência”, o serviço social do hospital conseguiu, via Conselhos Tutelares de Porto Alegre e de Torres, localizar a mãe. A chegada de Maria ao HPS fez Felipe saltar da cama e procurar o abraço do qual fugia há mais de um ano. Depois do tratamento, mão e filho foram para Torres.

A vida, como sempre, se revelava maior do que a pauta. “A gente não sabia mais que história era essa: do menino de rua, do menino que iria se salvar… Então resolvemos esperar”, lembra a repórter. O desafio era não perder o contato e descobrir, afinal, que história seria contada ao leitor.

Letícia não perdeu. Viajou algumas vezes a Torres – a três horas de carro de Porto Alegre – para ver como Felipe, no início, brincava na areia, se divertia como qualquer guri de sua idade faria e retomava a frequência à escola. E como, depois, lá mesmo ele foi alcançado novamente pelo crack e pela rotina de sumiços e internações já conhecida na capital.

Um dia, na cidade praiana, a incerteza e a angústia que estavam presentes desde o início do trabalho se manifestavam outra vez: a repórter descobriu, pelos vizinhos, que a família voltara a Porto Alegre. O endereço havia sido deixado “num papelzinho” – mas quem sabia onde estava o tal papelzinho? “Quase entrei em desespero”, relata. “Fui atrás de uma irmã da mãe, de outra, de um irmão, até que me disseram que uma irmã em Porto Alegre poderia saber onde ela morava.” Letícia localizou essa irmã e, com ela, percorreu as quebradas do novo endereço de Maria, a Vila do Esqueleto, assim batizada por ter se formado ao redor de uma obra inacabada. Ao fim de um dia inteiro de busca, elas a encontraram. Felipe estava sumido de novo – e lá se foi mais uma vez a repórter acompanhar a mãe nas peregrinações pelos ferros-velhos em que o guri costumava vender o que obtinha e pelos pontos de crack em que os recursos que juntava viravam fumaça.

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