Questão dos refugiados move encontro sobre democracia e o princípio da hospitalidade

Debate aconteceu dia 22 de outubro, organizado pelo Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia do IEA.

Será a hospitalidade um princípio essencial à democracia? Essa foi a pergunta que orientou o segundo debate do Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia, ocorrido no dia 22 de outubro no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. O tema do encontro foi O Desafio da Hospitalidade: Emigrantes e Refugiados.

De acordo com o coordenador do laboratório e do debate, o cientista político português Álvaro de Vasconcelos, a imigração global é um fator decisivo na afirmação de correntes identitárias que ameaçam as democracias na Europa e em outras partes do mundo.

Além de Vasconcelos, que é professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, participaram quatro debatedores: Geraldo Adriano Godoy de Campos, professor do curso de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM); Sylvia Dantas, professora da Unifesp e coordenadora do Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do IEA; João Alberto Alves Amorim, professor de direito internacional da Unifesp e coordenador da Cátedra Sérgio Vieira da Melo do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR); e Larissa Leite, coordenadora do Departamento de Proteção do Centro de Referência para Refugiados da Caritas Arquidiocesana de São Paulo.

O laboratório é uma parceria entre o IEA e o IRI. O primeiro debate, realizado em junho, tratou do tema O Desafio do Nacionalismo Identitário.

Foto: Wikimedia Commons
Foto: Wikimedia Commons

Hospitalidade e democracia

Ao abrir o encontro, Vasconcelos disse que a hospitalidade é um elemento precípuo da democracia e seus princípios deveriam ser incorporados aos direitos humanos. Ele lembrou que ao tratar do tema, o filósofo Jacques Derrida (1930-2004) disse que se deve “receber o outro sem saber sua identidade”.

Larissa Leite afirmou sua convicção de que a hospitalidade integra a democracia, pois tem o objetivo de “promover a dignidade humana”. No entanto, preferiu destacar em sua fala aspectos gerais que dificultam o acolhimento de refugiados pelo Brasil. Informou que existem cerca de 25 mil deles no país, entre reconhecidos, solicitantes e não identificados. O principal problema é a nacionalidade ser condicionante de direitos, segundo ela: “A gente tenta justificar o princípio da solidariedade dessa forma, quando na verdade deveria ser pela hospitalidade.”

Para Larissa, o primeiro desafio do país é construir um sistema justo, transparente e estável para as pessoas em estado vulnerável, como os refugiados e aquelas sujeitas ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo. Ela disse que o sistema de imigração é do período final da ditadura, excludente e com várias lacunas na legislação. “Quais as garantias que uma pessoa tem de que seu caso será analisado com imparcialidade, transparência e sem sofrer a pressão das relações internacionais?”, indagou.

Segundo ela, em São Paulo, as atitudes em relação aos refugiados estão ligadas, mas situam-se em extremos diferentes. Comentou que há hospitalidade e curiosidade sobre a cultura do estrangeiro, com pessoas e organizações querendo se envolver e mostrar que estão fazendo isso (“o problema é que muitas vezes é este último elemento que sobressai”). No outro extremo ela identifica o surgimento de numerosas ações sutis de reação à presença de estrangeiros. Essas atitudes também “se baseiam em sentimentos, não em questões racionais”.

Ressignificar conceitos

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

João Alberto Alves Amorim disse que também considera a hospitalidade um elemento essencial da democracia: “Se considero como a essência de um regime democrático o direito igualitário de participação, tenho de acolher o refugiado”. No entanto, ele também preferiu analisar outras questões ligadas ao tema.

Em sua opinião, “hoje vivemos uma crise de significados, por isso há a necessidade de ressignificar certos conceitos, mesmo o de democracia; o ‘outro’ também não tem o mesmo significado que tinha no século passado”.

O noticiário mostra a barbárie e até mesmo a banalização dos problemas, comentou. “A impressão é que voltamos ao início do século 20 e, em alguns casos, à Idade Média. Até hoje não conseguimos a igualdade para as mulheres na maioria das sociedades ocidentais.” Ainda assim, Amorim considera que a sociedade tem mostrado uma percepção crescente sobre o sofrimento do outro, apesar de “não ser possível saber o quanto essa atitude é natural ou então fabricada pela mídia”.

“As mesmas pessoas que demonstram sensibilidade exacerbada nas redes sociais, que choraram pelo menino morto na praia da Turquia, não se sensibilizam com a população negra que é morta na periferia das cidades brasileiras”, exemplificou. Ele alerta, contudo, que ao promover a necessária ressignificação de conceitos a sociedade deve tomar cuidado com aqueles que tentam impor medidas descriminatórias. Amorim vê risco nesse sentido na proposta de uma lei “supostamente antiterrorismo em tramitação”, que tipifica os crimes e prevê o bloqueio de bens, segundo as normas do Conselho de Segurança da ONU.

Para Sylvia Dantas, “atualmente, o outro é visto como uma ameaça que vem perturbar nossa suposta tranquilidade, nossa vida com privilégios com nos são outorgados”. Ela afirmou que o problema é que “estamos fazendo poucas perguntas”. Como exemplo, relatou que por ocasião de oficina realizada anualmente no Acnur, em Brasília, surgiu a pergunta sobre como o organismo se mantém. “Achei curioso que o Acnur tenha um orçamento de US$ 3 bilhões anuais e se mantenha por meio de contribuições voluntárias de países e doadores privados”, muitos dos quais, segundo ela, não primam pela observância de uma perspectiva humanitária.

Religião e identidade

Foto: Wikimedia Commons
Foto: Wikimedia Commons

Na opinião de Geraldo Adriano Godoy de Campos, a hospitalidade entra em conflito com o princípio de nacionalidade do Estado moderno, pois ela pressupõe a aceitação incondicional do Outro. Esse conflito “aponta para um problema no próprio vínculo entre cidadania e nacionalidade e para alguns limites da construção do Estado-nação”.

Segundo ele, a sociedade vive uma confluência de crises (institucional, ambiental, dos sindicados, do Estado-Nação), mas a mais profunda é a crise cognitiva, que leva todos a pensar “como os campos conceituais se organizam e qual o sentido das palavras”.

Antes de abrir a discussão para o público, Vasconcelos comentou que a hospitalidade brasileira ao refugiados talvez seja fruto do número pequeno deles (25 mil), ao passo que só nos países vizinhos à Síria há 4 milhões de pessoas nessa condição. Afirmou que o debate na Europa gira em torno da questão identitária: “A Finlândia discute se a presença de 300 mil refugiados alteraria a identidade do país”.

Outra questão levantada por ele é o contraste entre a perspectiva solidária nas redes sociais e a realidade. “A tendência nas redes sociais é a ‘customização’, pois a informação que vemos é a que queremos ver. As redes sociais correspondem à realidade ou ao que é importante para nosso amigos?”

No debate com o público, Dina Kinoshita, ex-professora do Instituto de Física (IF) da USP e ex-pesquisadora do IEA, disse que entraram 800 mil imigrantes na Europa nos últimos anos e que não acha que o problema em aceitá-los seja só uma questão de identidade, como disse Vasconcelos, pois “é preciso propiciar condições de vida a essas pessoas”.

Questão à questão religiosa, Dina comentou que a prerrogativa do estado laico é forte na França e que “admitir um número grande de imigrantes que defendem um Estado religioso é um problema que vai muito além do simples direito”.

Ao responder a ela, Sylvia disse que a colocação de Dina reflete o incômodo que muitas pessoas sentem em relação aos imigrantes e que as leva “a considerar a cultura como algo estanque, congelado, quando na verdade ela está sempre mudando”, inclusive pela presença de imigrantes.

Segundo Amorim, os países europeus estão fazendo contas, pois precisam de mão de obra e querem selecionar quem mais lhes interessa. Quanto à questão religiosa, considera sintomático que o Estado laico seja discutido apenas em relação ao Islã, enquanto no Brasil há celeuma toda vez que se discute a retirada de crucifixos das paredes de repartições públicas”.

Vasconcelos disse que apesar de a lógica econômica apontar que a Europa precisa de milhões de imigrantes, há reações a isso, “daí se revela que a questão central é a identitária”.

Mauro Bellesa / Instituto de Estudos Avançados da USP

Scroll to top