Pesquisa da EE revela que violência de gênero é invisibilizada nos postos de saúde

Essa é a conclusão de um estudo que buscou compreender limites e possibilidades da Estratégia de Saúde da Família para reconhecer e enfrentar as necessidade de saúde das mulheres que vivenciam a violência.

Nana Soares / Agência USP de Notícias

Os profissionais de uma Unidade Básica de Saúde não conseguem, na maioria das vezes, reconhecer a violência sofrida pelas usuárias do serviço. A violência contra a mulher acaba sendo um fenômeno invisibilizado nas unidades de saúde: existe, mas não é reconhecido. Essa é a conclusão de um estudo defendido na Escola de Enfermagem (EE) da USP, que buscou compreender limites e possibilidades da Estratégia de Saúde da Família para reconhecer e enfrentar as necessidade de saúde das mulheres que vivenciam a violência.

A pesquisa da enfermeira Rebeca Nunes Guedes de Oliveira abrangeu casos de violência de gênero contra as mulheres. Isto é, casos em que a violência é determinada pelo fato de ser mulher. Segundo Rebeca, há padrões sociais que colocam a mulher em lugar subalterno e que justificam a violência, tanto que muitas delas nem percebem que estão sofrendo vítimas. Para o estudo, a enfermeira passou cinco meses em uma Unidade Básica de Saúde do Capão Redondo, em São Paulo. Lá, ela observou como era o atendimento às mulheres e o funcionamento do serviço, além de entrevistar 22 profissionais de saúde (que incluíam médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e agentes comunitários de saúde) e 13 usuárias do serviço.

O estudo Violência de gênero e necessidades em saúde: limites e possibilidades da estratégia saúde da família observou que a violência de gênero contra as mulheres é um fenômeno prevalente entre as usuárias do serviço, mas não é devidamente reconhecida pelos profissionais, pois está submersa em queixas clínicas. Os profissionais então respondem a questão numa atenção medializada que trata dessas queixas, quando na verdade há um motivo para essas queixas existirem. “Esses problemas precisam ser tratados, é claro, mas se não forem considerados os aspectos que as determinam, essas queixas serão reiteradas, que é o que tem acontecido”, diz a pesquisadora. Segundo Rebeca, a maioria das mulheres não tem problemas para falar sobre a questão da violência, mas não são perguntadas sobre o assunto. A pesquisadora acrescenta ainda que o serviço de saúde ainda não é visto como um local de enfrentamento para a questão, mas como um lugar para se curar doenças, quando há pesquisas comprovando que cerca de 1 em cada 3 mulheres atendidas nas UBS têm suas queixas relacionadas à violência que sofrem.

Necessidades em saúde

Nas entrevistas com os profissionais e com as usuárias, foram identificadas algumas necessidades em saúde. O que os profissionais identificaram, no entanto, em alguns aspectos, foi diferente do que as mulheres descreveram como necessidades.

Os trabalhadores da UBS reconheceram quatro grupos de necessidades principais para as mulheres: as boas condições de vida, pois estas determinavam a alimentação, renda e trabalho das mulheres e, consequentemente, as suas necessidades em saúde. No entanto, eles não sabem como ajudar nisso; a autonomia, tanto financeira quanto a individual para conseguirem enfrentar a questão da violência. Os profissionais também se sentem impotentes nessa questão, e muitos responsabilizaram as mulheres, dizendo que a atitude tem que partir primeiro delas; o vínculo, pois muitos consideram que essas mulheres precisam de escuta e de acolhimento, sendo esta a necessidade que mais vêem ao seu alcance; e a questão da medicalização. Isto é, os profissionais são formados para fazer uma intervenção biomédica nas pacientes, medicalizando as necessidades que são reconhecidas.

Já as pacientes descreveram o vínculo, a felicidade e a autonomia como necessidades. Tais escolhas surpreenderam a autora da pesquisa pois, segundo ela, “muitas não dispunham nem das necessidades para a manutenção de sua vida, e mesmo assim citaram necessidades propriamente humanas”.

O vínculo e a autonomia foram necessidades reconhecidas por profissionais e usuárias, embora, na prática, o vínculo não fosse utilizado em toda sua potencialidade. Sobre a diferença de discurso entre as necessidades descritas pelos profissionais e pelas mulheres, Rebeca pontua que os trabalhadores da UBS reconhecem as necessidades que se encaixam no que eles, historicamente, foram formados para fazer, uma intervenção biomédica, enquanto as mulheres chegam com necessidades que vão além disso, o que acaba reduzindo as ações à práticas medicalizadas, como a utilização de antidepressivos para tratar de seu sofrimento, por exemplo. Para Rebeca, a pergunta que fica é se os profissionais reconhecem mesmo as necessidades das mulheres, pois destacam as necessidades não citadas por elas.

Para a autora da pesquisa, orientada por Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca, o que fica claro em seu trabalho é que é impossível atender as mulheres de maneira efetiva e emancipadora sem ter uma perspectiva de gênero. Perspectiva essa que já está inclusa nas políticas de saúde, mas que ainda não é operacionalizada na prática, havendo uma lacuna que vem desde a formação dos profissionais. Desse modo, é necessária uma transformação nas práticas de atendimento, reconhecendo que as mulheres portam necessidades específicas, determinadas pela construção histórica do que é ser mulher na sociedade.

Mais informações: email rebecanunesguedes@gmail.com, com Rebeca Nunes Guedes de Oliveira 

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