Pesquisa da FSP liga alimentos ultra-processados à epidemia de obesidade

Levantamentos disponíveis mostram que a "comida pronta" tem tudo para ser uma das maiores vilãs do excesso de peso e doenças associadas.

Luiza Caires e Diego Rodrigues

Ganhando notoriedade em 2010 ao publicar um artigo sobre o perigo dos alimentos ultra-processados em prestigiado periódico internacional, os cientistas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde agora têm um uma nova meta: relacionar, a partir de estatísticas comprovadas, o aumento no consumo destes alimentos e a epidemia global de obesidade.

Neste sentido, os estudos vão avaliar tipos de processamento e seu impacto potencial sobre a dieta e a saúde; os mecanismos que ligam tais produtos ao chamado ‘sobreconsumo passivo de energia’ e à obesidade; a tendência mundial da participação deles na dieta; e, finalmente, as implicações de tudo isso para as políticas públicas.

Segundo o professor Carlos Augusto Monteiro, que coordena o Núcleo e o estudo, a pesquisa ainda está em sua fase inicial, na formulação de hipóteses – mas os primeiros levantamentos disponíveis mostram que a “comida pronta” tem tudo para ser uma das maiores vilãs do excesso de peso e doenças associadas.

Processamento

Por uma série de operações chamadas de processamento, alimentos in natura são convertidos em produtos alimentícios menos perecíveis e cujo consumo requer menos procedimentos culinários. Estes são divididos entre os minimamente processados, os ingredientes culinários em preparações com os minimamente processados, e os ultra-processados propriamente ditos.

No primeiro grupo, estão itens como hortaliças limpas, grãos polidos, feijões secos, leite pasteurizado, e carne congelada, com perda discreta de nutrientes. Já os ingredientes culinários incluem alimentos como açúcar, óleo de milho e farinha de trigo, com grande perda de nutrientes. Apesar das facilidades que representam no que diz respeito ao armazenamento e ao sabor, esses alimentos já trazem o risco de resultarem em refeições extremamente calóricas e com excesso de gordura e açúcar.

O terceiro grupo, dos ultra-processados, é o mais perigoso. Embora o ultra-processamento dê origem a produtos não perecíveis, que agradam facilmente o paladar, e que demandam mínima – ou nenhuma – preparação culinária, há enorme perda de nutrientes, fibras e água. A presença de aditivos, o volume excessivo de gorduras não saudáveis, açúcar e sódio, além da indução ao sobreconsumo passivo de energia completam a lista dos malefícios.

De acordo com Monteiro, estudos já documentaram que em seu conjunto, quando comparados aos alimentos minimamente processados, os produtos ultra-processados tendem a apresentar mais açúcar, mais gordura saturada, mais sódio, menos fibra e maior densidade energética.

Agravantes

A alta densidade energética não é o único mecanismo que liga o consumo dos ultra-processados à obesidade. Também entram na conta a ingestão de ‘calorias líquidas’ (bebidas adoçadas e muito calóricas); a hiperpalatabilidade, estimulando o consumo mesmo quando a pessoa se sente ‘satisfeita’; a adição de químicos, a prática do mindless eating (algo como ‘comer sem se preocupar’) e do consumo de porções gigantes; além de ações de marketing agressivas – e mesmo antiéticas – por parte da indústria.

“Uma estratégia recente envolve o desenvolvimento de ultra-processados especialmente destinados a consumidores de baixa renda de países emergentes”, revela o pesquisador. Para isso, são feitas ações como a  fortificação com vitaminas e minerais, a comercialização dos alimentos em ‘embalagens econômicas’ e a criação de novos canais de comercialização, como a venda porta a porta e a utilização de vendedores recrutados na própria comunidade. “O marketing dos produtos ultra-processados promove o comer compulsivo”, alerta.

O marketing dos produtos
ultra-processados promove
o comer compulsivo.

Para o docente, os investimentos no marketing de alimentos estão concentrados em produtos ultra-processados por se tratarem de produtos com grande margem de lucro (ingredientes baratos), além de serem – ou parecerem – ‘únicos’, tornando-se assim facilmente ‘produtos de marca’.

Dados de 2009 demonstram que estes alimentos, muitos dos quais controlados por corporações transnacionais com presença mundial, já representavam quase 28% do total calórico da cesta nacional de alimentos brasileira, e com tendência a crescer. Na opinião de Carlos Monteiro, somente a reformulação de produtos ultra-processados não resolve o problema.

“Pelo menos no que concerne à prevenção da obesidade, a única solução são ações públicas efetivas para deter ou reverter o crescimento do consumo de produtos ultra-processados”, defende.

Nutrição e saúde

Formado há 22 anos e localizado na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde conta com cerca de 20 participantes, além de colaborações da Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis (FEA), a Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), a Escola de Educação Física (EEFE) e a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), e também outras universidades brasileiras, como a Unesp e a Unifesp, e internacionais, como as Universidades de Harvard e Londres.

“Os estudos são transdisciplinares e portanto envolvem diversas áreas do conhecimento, como nutrição, epidemiologia, ciência dos alimentos, economia e políticas públicas”, enumera o coordenador.

A necessidade de um grupo de estudos na área de alimentação é explicada pela professora do Departamento de Nutrição Marly Augusto Cardoso, pesquisadora do Núcleo:

“Estudo recente da OMS apontou que cinco em dez dos fatores de risco que mais causam morte precoce e doença no mundo estão associados a alguma forma de má nutrição”.

Para ela, essas estimativas “não deixam dúvidas de que é fundamental o conhecimento sobre a frequência, distribuição, determinantes e consequências das várias formas de má nutrição e sobre os meios efetivos para controlá-lasl”, completa a professora.

As mudanças no quadro alimentar da população nos últimos anos gerou uma mudança no foco de estudo do grupo. “A tendência da desnutrição e da obesidade determinaram mudanças substanciais nas prioridades da política nacional de alimentação e nutrição do país”, declara Marly.

Tendo isto em vista, o Núcleo busca avaliar o consumo alimentar e o estado nutricional da população, estudar a distribuição, as tendências temporais e determinantes de deficiências nutricionais, obesidade e outras doenças crônicas relacionadas à alimentação, além de identificar ações e estratégias necessárias para a prevenção ou controle dessas doenças e avaliar programas e políticas públicas em alimentação e nutrição. “Nós desenvolvemos e testamos métodos, técnicas e instrumentos diagnósticos na avaliação do consumo alimentar, atividade física e estado nutricional de populações, realizamos a análise de dados e interpretação de estudos populacionais sobre frequência, distribuição, determinantes e conseqüências de distúrbios nutricionais”.

O grupo, porém, não se resume apenas ao aspecto teórico da pesquisa. “Nosso Núcleo também formula e avalia políticas, programas e intervenções visando à promoção da saúde e nutrição da população. Nós fazemos a assessoria e orientação de organismos nacionais e internacionais relacionados à saúde pública”, conclui a docente.

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