O mundo sem as velhas hegemonias – tendências nas relações internacionais

Questões da relações internacionais contemporâneas são debatidas pelos professores Andrew Hurrell, da Oxford University e Charles Jones, do Centro de América Latina da Cambridge University.

Luiza Caires e Gabriela Malta Felix/USP Online

No último mês de novembro, aconteceu na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP a Conferência Impasses nos Grandes Regimes Internacionais, com a participação de Andrew Hurrell, professor de Relações Internacionais da Oxford University e Charles Jones, diretor do Centro de América Latina da Cambridge University.

A discussão integra o programa Conferências USP, que vem sendo realizado desde 2011 e seguirá até 2013. As Conferências surgiram a partir da necessidade de reforçar o debate sobre o conhecimento na Universidade, segundo o professor Marco Antônio Zago, pró-reitor de Pesquisa, na abertura da conferência do dia 22 de novembro. Os eventos são agrupados em 10 temas gerais, distribuídos em todas as áreas de conhecimento, que não se limitam pelas fronteiras das disciplinas.

Além da exposição dos professores, durante o evento foi lançado o livro Conferências USP 2011 – Assimetrias da Sociedade Internacional, que reúne artigos de Adam Przeworski, Celso Lafer, Jacques Marcovitch e Otaviano Canuto, participantes do programa no ano passado.

Brasil: o país de qual futuro?

O primeiro professor a falar foi Charles Jones. Para ele, há características comuns nos países do ocidente que persistem a despeito da globalização. O título dado a sua conferência consistia justamente na pergunta:

Quem é mais ‘tipicamente americano’ – Estados Unidos ou Brasil?

“A visão simbólica das Américas com um refúgio do velho mundo e um lugar para recomeço não desapareceu inteiramente. E não considero tão óbvia a ideia de Índia e China como poderes emergentes. São países que ‘já estavam lá’. O Brasil, sim, pode ser considerado como um poder emergente”, opina.

O professor contestou também as categorias regionais que surgiram após a Guerra Fria. Para ele, nem a noção de “Ocidente” englobando América do Norte e Europa Ocidental, nem a de “América Latina”, separada da América do Norte, parecem mais ‘naturais’ do que a de uma civilização americana incluindo todo o hemisfério ocidental. Além disso, a grande exceção na transição de colônias europeias para estados independentes foi a América Espanhola, onde houve uma grande fragmentação, ao contrário das outras regiões, com maior integração política em grandes federações.

Duas décadas atrás, segundo o professor, ele foi um dos poucos que se opôs à tese do teórico Samuel Huntigton de que, no mundo contemporâneo, os conflitos ideológicos da Guerra Fria dariam lugar a uma nova era de choques, mas entre as civilizações, sendo eminentemente culturais e religiosos.

Não seria esta a realidade, para Jones, primeiramente pela falta de estados hegemônicos, como era o caso na Guerra Fria, para agregar e liderar os demais em uma ‘civilização’. Apesar de, na nova ordem mundial, a liderança de Estados Unidos e parte da Europa ter permanecido incontestável no chamado mundo ocidental, não se pode dizer o mesmo de regiões como África, mundo islâmico e América Latina, onde grandes civilizações nos moldes preditos por Huntigton não eram claramente identificáveis.

Além disso, não é plausível para todos os casos a continuidade geográfica imaginada por Huntigton para as civilizações. Existem significativas minorias islâmicas, por exemplo, espalhadas por todo o mundo – e esta ideia de contiguidade territorial teria que pressupor comunidades sem conflitos internos. Por fim, algumas civilizações destacadas pelo pensador pareciam ser definidas pela religião, e outras não.

Para Charles Jones, a formação de uma civilização seria melhor definida como “a maneira com que os povos lidaram com e sustentam diferenças culturais”, sendo o exemplo mais sólido disso a coexistência conquistada no interior das cidades ao longo da história das origens das civilizações.

Todos América

No segundo ponto defendido pelo acadêmico, e que considera mais original que o primeiro, ele revisita seu argumento de que a noção de um “Ocidente” excluindo a América Latina é tão implausível quanto a de um “Ocidente” americano, que exclua a Europa . Para Jones, a ideia de uma América Latina como um espaço culturamente distinto do restante da América – argumento que ganhou vida própria ao ponto de ele mesmo ter sido em parte convencido – foi essencialmente ‘inventada’ ao longo do século XIX, como um epifenômeno das rivalidades geopolíticas da Europa do período.

A exceção que constituem os Estados Unidos pode então ser melhor interpretada, em sua visão, como um desvio dos padrões típicos da América, decorrente, principalmente, do extraordinário sucesso da economia americana nas décadas anteriores à crise de 2008, em comparação com a de outros Estados do hemisfério.

Porém, “mesmo sendo um desvio, os EUA apresentam características semelhantes às que podem definir o hemisfério como um todo”, defende. As diferenças óbvias entre os Estados Unidos e o Equador são um argumento tão forte contra qualquer forma ideia mais ou menos unificada de América quanto as diferenças entre Estônia e Espanha para contestar uma generalização da Europa.

Mesmo sendo um desvio, os EUA apresentam características semelhantes às que podem definir o hemisfério como um todo.

Em decorrência da análise que faz sobre o caso estadunidense, é possível nos perguntarmos se com o atual crescimento que indica um novo papel do Brasil no cenário mundial, mais o caráter já excepcional do país no continente (em função da língua, do passado imperial e da grande extensão do território), ele não poderia vir a constituir também um desvio, em moldes semelhantes ao que têm sido os EUA. E, em caso positivo, se ele poderia representar  um poder na América menos díspare do restante do continente como os Estados Unidos têm sido. Esse, para Charles Jones, é um dos desafios do país nos próximos anos.

Um poder em mutação

O segundo palestrante foi Andrew Hurrel, que discutiu o atual momento das relações internacionais, começando pela transição do poder, com a transferência dos Estados Unidos e países centrais do Ocidente para um novo ambiente: os países emergentes.

Para ele, as relações internacionais atuais enfrentam um sério desafio, que é a divergência entre um mundo que passa por mudanças muito rapidamente e as teorias das relações internacionais, que ainda trabalham dentro das antigas molduras – um cenário de mundo que divide oriente e ocidente e que é dominado pelos Estados Unidos.

Outros poderes

Para Hurrel, quando se fala em poderes emergentes, a abordagem mais comum é se referir à mudança de um grupo de estados para outro: “o poder é claro – estava ‘aqui’, e agora está ‘lá’. É o que se quer dizer quando se fala em superpotência da China, Índia ascendente, ou do momento do Brasil”.

Mas, segundo o pesquisador, é possível pensar num sentido mais largo de mudança de poder – e temos exemplos históricos neste sentido. Esta outra mudança estaria ligada a múltiplos fatores: transformações na economia global; difusão de novas ideias, como autodeterminação dos países, liberdade e dignidade humana; desenvolvimento tecnológico; e novas formas de mobilização política e social, com ativismo organizado em redes de informação, e grupos minoritários alcançando projeção. Este é um poder “mais difuso”, mas que precisa ser levado em consideração, e que “torna mais difícil governar internamente as sociedades”.

Entre as consequências deste novo quadro, as categorias antes usadas pela geopolítica estão sendo postas à prova, a exemplo das de ‘norte e sul’, ‘mundo ocidental’ e ‘terceiro mundo’, que unificam realidades que, na verdade, são bem diversas.

Outra implicação, de acordo com Andrew Hurrel, é a tensão entre comparação – abordagem com que as ciências sociais foram construídas – e conexão, que surge para abalar a primeira.

Ainda, é preciso cuidado com noções amplamente aceitas e difundidas, mas que nem sempre estão concretamente baseadas. “Não há evidências, por exemplo, de que toda vez que acontecem mudanças no poder material [econômico], necessariamente haverá ameaças à ordem política global, nem sérios riscos de conflitos” diz, ressaltando que o maior desafio dos países não é lidar com as mudanças materiais, mas com a nova dinâmica social, e sua nova posição no mundo.

Isso vale tanto para os EUA, deixando de ser hegemônicos (e a Guerra Fria mostrou que o país tem dificuldade de aceitar rivalidade cultural/ideológica), quanto para os emergentes, como Índia e China, que não querem apenas os benefícios materiais do sistema, mas também ser reconhecidos como civilizações, e ter seu ‘lugar ao sol’. E para isso, mais do que nunca, os chamados emergentes precisam também equacionar seus problemas domésticos.

Ainda para o primeiro semestre de 2013, está previsto o lançamento, pela Edusp, do livro Conferências USP 2012 – Impasses nos Grandes Regimes Internacionais. Ele vai trazer a versão impressa e traduzida das palestras que aconteceram no evento. Os vídeos completos da Conferência podem ser assistidos no site da IPTV USP.

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