Exposição destaca cientista “príncipe dos observadores” em terras tupiniquins

A exposição "Fritz Müller – O Príncipe dos Observadores", resgata a memória desta figura fundamental para história da ciência no Brasil.

Em exibição na Biblioteca Florestan Fernandes, da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras (FFLCH) da USP, a exposição Fritz Müller – O Príncipe dos Observadores, resgata a memória desta figura fundamental para história da ciência no Brasil.

Produzida pelo Instituto Martius-Staden em conjunto com os pesquisadores Luiz Roberto Fontes, mestre e doutor pelo Instituto de Biociências (IB) e Stefano Hagen, docente da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, a mostra tem como objetivo oferecer um panorama informativo e ilustrativo da vida e obra do naturalista – pouco lembrado no cenário nacional e mundial, embora seja continuamente estudado por grupo respeitável de especialistas.

Originado a partir do pensamento do filósofo René Descartes, o método científico parte de um princípio aparentemente simples, mas crucial: a observação. Foi graças à observação atenta dos fenômenos da natureza ao nosso redor que algumas das principais teorias científicas ganharam fundamento, mudando completamente a forma como a humanidade enxerga o universo e a si própria.

Para o naturalista britânico Charles Darwin, foi a observação o grande instrumento por trás de seu mais notório trabalho, “A Origem das Espécies” (1859). Entretanto, foi por meio dos olhos de outro cientista, o alemão naturalizado brasileiro Johann Friedrich Müller, que Darwin conseguiu sedimento para efetivamente consolidar a hipótese da seleção natural.

Pouco mais de um século após sua morte, o homem que ficou conhecido internacionalmente como Fritz Müller começa a ganhar reconhecimento por sua contribuição a Ciência. Brasileiro “por opção”, Müller comprovou boa parte de suas teorias embrenhado no interior de Santa Catarina, em pleno século 19.

Projeto Nosso Fritz Müller

A ideia de homenagear Fritz começou em 2009, conhecido internacionalmente como o “Ano Darwin”. Foram ao todo dois anos de pesquisa e preparação do material até que, em 2011, a exposição começou a percorrer o Brasil. “Já passamos por mais de 20 localizações só no Brasil. De Porto Alegre até o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro”, conta Ana Rüsche, uma das responsáveis pela produção da mostra. “Passamos inclusive por São Paulo. A Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) foi a primeira a exibir o material na USP”, explica.

Com três frentes, a exibição trabalha diferentes aspectos que rodearam Fritz Müller. A primeira oferece um panorama biográfico do cientista, desde as origens de sua família até sua formação na Alemanha. A segunda tem como objetivo situar os visitantes em relação aos contextos da época. E finalmente, a terceira frente mostra as descobertas científicas de Fritz, como elas ampararam o trabalho de Darwin e como suas teorias permanecem incorporadas até hoje na biologia moderna.

“Fritz Müller foi um lavrador e cientista, homem raro, que conhecia o segredo de manusear as frágeis borboletas com os dedos calosos, que o machado e o enxadão jamais conseguiram inutilizar para as delicadezas do microscópio” revela Fontes ao discorrer sobre o homem que, por acaso, tornou-se seu principal objeto de estudo.

A descoberta dessa figura pouco cultuada no Brasil veio a partir do interesse do pesquisador pela cupinologia, área que estuda os cupins. “Fritz foi o primeiro cupinólogo do Brasil”, explica o pesquisador, relatando que foi deste recorte que começou a investigar as grandes contribuições científicas de Müller. Em 2005, junto à Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Fontes foi um dos responsáveis pelo “Projeto Nosso Fritz Müller”, que resultou numa exposição de artesanato e de alguns trabalhos, em especial livros coletados por ele durante viagens internacionais.

O principal deles, “Für Darwin, 1864”, é uma análise criteriosa em 12 capítulos de como os crustáceos encontrados no litoral de Santa Catarina comprovam a teoria evolutiva, publicada cinco antes por Charles Darwin, e razoavelmente contestada pela comunidade científica até então. Traduzido do alemão por Luiz e pelo professor Stefano, o livro tornou-se peça central do que viria ser a exposição sobre o pesquisador, cinco anos depois.

Um cientista-viajante

Fritz Müller nasceu na Alemanha em 1822, filho de um pastor evangélico que, apesar das origens humildes, foi um dos responsáveis por despertar no futuro cientista o interesse pelo mundo da biologia. Neto de um ilustre farmacêutico, Hermann Trommsdorff – criador de uma das primeiras escolas de farmácia do mundo, Fritz cresceu para se tornar também um farmacêutico, mas abandonou sua formação inicial ao cursar filosofia na Universidade de Berlim entre 1840 e 1842.

Aluno dedicado em Ciências Naturais, que na época faziam parte do curso de Filosofia, Fritz era conhecido por sua personalidade marcante, capacidade de observação acima da média e desejo de percorrer o mundo.

Um homem à frente de seu tempo, Müller rompeu com as correntes de pensamento dominantes na Alemanha ao se declarar ateu. “Ele acreditava que a religião não devia se intrometer nas questões da ciência ou mesmo na vida cotidiana”, conta Luiz.

Abandonando o emprego de professor após a formação em filosofia, Fritz foi cursar medicina em 1845 na Universidade de Greifswald, mas se recusou a participar da colação de grau por não querer pronunciar o juramento religioso que fazia parte do cerimonial. “Sempre que tiver que falar, hei de falar a verdade”, declarou em inúmeras cartas ao se referir aos momentos de conflito motivados por suas fortes convicções.

Formado em 1849, Fritz foi impedido de praticar medicina na Alemanha, envolvendo-se com a chamada Revolução Liberal – que pretendia unificar o país, mas que inevitavelmente fracassou. Desempregado, pai de uma filha fora do casamento, ele optou pela emigração e escolheu o Brasil como sua nova pátria.

Em 1852, recém-chegado ao país, Fritz se mudou com a família para a colônia de Hermann Blumenau e lá foi forçado a fazer a única concessão de sua vida: se casar. Sem festa ou fanfarra, o naturalista que gostava de caminhar descalço formalizou sua união com a esposa Karolina, com quem teve mais oito filhas durante toda sua vida.

Nos quarenta anos em que passou no Brasil, o homem que achava que a ciência não deveria ser complicada produziu 251 estudos científicos sobre a Mata Atlântica, sua fauna de insetos e flora exuberante. Ao se deparar com a obra de Charles Darwin, juntamente com o repúdio com que o meio acadêmico recebeu o trabalho, Fritz se deu a tarefa de escrever um conjunto de capítulos, transformados em cartas à Darwin, que comprovavam por meio de observação minuciosa como os preceitos estabelecidos em “A Origem das Espécies” se faziam presentes no litoral catarinense.

Ao receber as cartas de Müller, Darwin contratou a tradução oficial do alemão para o inglês, tornando-se correspondente frequente do brasileiro naturalizado, a quem apelidou de “príncipe dos observadores”. De tão impressionado, o evolucionista inglês chegou a publicar as cartas como artigos na renomada revista Nature.

“Ele se transformou no correspondente mais querido de Darwin”, destaca Stefano Hagen. “E, além disso, provou que com um instrumental muito simples é possível realizar algo grandioso”.

Legado internacional

“Fritz Müller é um exemplo de competência e simplicidade”, finaliza Luiz Fontes. “Precursor dos ecólogos, pioneiro no estudo de inúmeros grupos botânicos e o maior especialista em flora e fauna da Mata Atlântica do sul do país”.

Com base na própria perseverança e em sua capacidade de observação, Müller produziu ciência de alto nível, criando coleções que estão espalhadas em diversos museus no Brasil e no mundo. Vivendo numa era muito anterior às redes sociais e às facilidades de comunicação que possuímos hoje, o naturalista reforçou a noção de que ciência nada mais é do que um trabalho em equipe. Suas observações foram partilhadas via cartas com correspondentes internacionais e foram pontos de partida para diversos outros estudos.

A exposição, que fica até 12 de abril na Biblioteca Florestan Fernandes, foi traduzida e levada também para Alemanha, chegando a ser exposta no Museu Alexander Koenig em Bonn e no Centro Brasileiro da Universidade de Tübingen.

O Catálogo da Exposição pode ser baixado como e-book. A edição eletrônica foi possível devido ao fomento da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) da USP, por meio da Comissão de Cultura e Extensão da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia.

Mais informações: email arusche@martiusstaden.org.br, com Ana Rüsche

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