Pesquisa da FAU indica que distância entre produção e consumo incentiva produtos improvisados

Estudo da FAU mostra que istanciamento entre produção e consumo faz com que muitos objetos sejam utilizados, na prática, de maneira diferente, favorecendo a produção de improvisações, ou gambiarras, que dão a eles novas utilidades.

Júlio Bernardes / Agência USP de Notícias

As gambiarras estão presentes no dia-a-dia, na forma de produtos industrializados que ganham funções diferentes da sua concepção ou que tem sua forma modificada, a fim de atender necessidades cotidianas imediatas. Pesquisa do designer Rodrigo Boufleur, realizada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, aponta que o distanciamento entre produção e consumo faz com que muitos objetos sejam utilizados, na prática, de maneira diferente, favorecendo a produção de improvisações que dão a eles novas utilidades.

A pesquisa, orientada pela professora Maria Irene Szmrecsányi, da FAU, reuniu cerca de 260 imagens contemporâneas de gambiarras em diversas situações do cotidiano. O designer procurou investigar a produção existente por trás das improvisações. “Gambiarras podem ser definidas como improvisações utilitárias, a partir de recursos industrializados”, afirma. “Qualquer subversão no uso ou na função do objeto, que mude sua finalidade, contrariando o design e a função originais, é uma improvisação, ou seja, uma gambiarra”, acrescenta. Ele menciona exemplos bastante simples, como a palha de aço colocada na antena de televisão para melhorar a recepção da imagem, uma faca de serra usada como chave de fenda ou um chinelo colocado embaixo do pé de uma moto para que ela não caia na areia da praia.

A ideia de produção está relacionada com o trabalho de transformação da forma e da função dos objetos. “Além da improvisação em si, há um trabalho de ajuste utilitário, que utiliza os produtos industrializados, recursos predominantes na sociedade contemporânea, readequando suas finalidades e qualidades físicas”, diz. Em sua dissertação de mestrado, apresentada na FAU em 2006, o designer analisou a relação da gambiarra com o design. “Na ocasião, o estudo mostrou a gambiarra como uma forma alternativa de design”. Neste trabalho, Boufleur propõe uma abordagem sócio-econômica, sob o ponto de vista do consumo, contemplando conceitos de Michel de Certeau e Karl Marx.

Segundo Boufleur, Certeau fala em “práticas do cotidiano”, fazeres que acontecem a partir de uma dada estrutura ou sistema, como o uso da língua, ou caminhar pela cidade. “O ato de usar objetos industrializados para outras necessidades, numa improvisação utilitária do cotidiano, seria um exemplo deste tipo de prática”, observa. ”A abundância de produtos industrializados leva ao surgimento de novas necessidades, as quais acentuam a infinidade de improvisações e que, muitas vezes, terminam por gerar novos produtos.

Improvisação

De acordo com o designer, “ao mesmo tempo, os próprios produtos industriais povoam nosso entorno, sendo recursos disponíveis para a realização de necessidades imediatas, e nesse processo está envolvida a criação das gambiarras”.  A improvisação pode se converter em produtos, como aconteceu com o uso de ferro de passar roupa para alisar cabelos, que daria origem às chapinhas de alisamento. “O pensador Vilém Flusser define os objetos como obstáculos, na medida em que geram a necessidade de novos objetos, que criam outros obstáculos, numa cadeia infinita de produção e consumo”, aponta.

Boufleur conta que Marx, ao teorizar sobre  a ideia de mercadoria, definiu dois tipos de valor: o de troca e o de uso.  “A análise econômica, no entanto, se atém apenas à realização do valor de troca. A questão utilitária fica de lado, não importando a realização do valor de uso” , explica. “Isso provoca um distanciamento entre os objetivos da produção e do consumo, apontado por autores como Wolfgang Haug e Jean Baudrillard, e favorece a manifestação de improvisações”.  Diferentemente da condição de mercadoria, o designer afirma que a produção por trás das gambiarras não implica em um valor econômico, pois elas são feitas para serem usadas, e não para serem vendidas.

Diante da ausência de um indicador voltado à esfera de uso, Boufleur propõe o conceito complementar de “valor de utilização”. “Esse valor enfatiza a importância da improvisação enquanto produção paralela e necessária às mercadorias industriais para a realização material de nossas necessidades”, ressalta. O designer se inspirou em modelos ecológicos que sugerem indicadores como “valor de não-uso” e “valor de existência”. “A ausência deste tipo de percepção de valor, fez com que o desenvolvimento da sociedade, orientado pela produção de mercadorias focadas na realização de seu valor de troca, implicasse em problemas ambientais. Neste sentido, as improvisações pode ser vistas também como uma forma de preservação, na medida em que reaproveitam artigos industriais”.

A pesquisa organizou exemplos de gambiarra em sete categorias, que incluem informação e entretenimento (rebobinar fitas cassete com caneta, embalagens de biscoitos usadas para ampliar o alcance de antenas de wi-fi), alimentação (mexer o cafezinho com palito de dentes, usar colher para segurar o gás das bebidas), saúde e higiene (forrar tampa do vaso sanitário com papel higiênico, limpar vidros com jornal), vestuário (emendar óculos com fita adesiva, consertar zíper com argola de chaveiro), domésticas (emendas de varais, enrolar mangueira em roda de pneu), espaço público e transporte. “Muitas vezes, carcaças de automóveis são transformadas em carroças puxadas por animais, aproveitando um material mais disponível do que os recursos naturais, como a madeira”, conclui Boufleur.

Mais informações: email rboufleur@gmail.com e boufleur@usp.br, com Rodrigo Boufleur

Scroll to top