Para psicóloga, situações de negligência à criança estão ligadas a isolamento e perturbações

Estudo da FFCLRP aponta que valores e práticas da instituição escolar isolam famílias e causam negligência.

Rosemeire Soares Talamone / Serviço de Comunicação Social da Coordenadoria do Campus de Ribeirão Preto

Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP identificou que a situação de negligência vivenciada por crianças está ligada a dois mecanismos específicos. Um é relativo a uma perturbação na relação família-coletividade, razão pela qual a família vive isolamento socioemocional, o que dificulta o acesso a apoio, seja ele de pessoas do convívio ou de profissionais de serviços especializados. O outro é relativo a uma perturbação na relação entre cuidadores-criança, caracterizado por uma baixa frequência de interação entre cuidadores e crianças. Quando a interação acontece, essa tende a ser negativa.

A pesquisa é da psicóloga Juliana Martins Faleiros, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, na FFCLRP, orientada pela professora Marina Rezende Bazon, e foi premiada pela Sociedade Brasileira de Psicologia, como melhor trabalho de doutorado apresentado no evento. A pesquisadora realizou uma investigação de replicação teórica, tendo por base um modelo conceitual de definição de Negligência Infantil. “Essa é uma das modalidades mais prevalentes de maus tratos domésticos em todo o mundo”, lembra a pesquisadora.

Durante a pesquisa Juliana detectou, também, que a instituição escolar desempenha papel relevante na produção dos maus tratos. “É chocante o papel desempenhado pela instituição escolar que, por meio de seus valores e práticas, colocava famílias em alto risco para maus tratos”. Outro aspecto, que chamou a atenção foi o fato de que, apesar de os problemas apresentados pelas famílias negligentes serem bastante evidentes e chocantes para o entorno social a que pertencia, a comunidade não apresentava disposição para agir a não ser pela via de rechaço à família, apesar dessa mesma comunidade reconhecer e julgar negativamente os cuidados dessas famílias para com suas crianças.

Segundo Juliana, as consequências da negligência com as crianças certamente se manifestaram muito precocemente, mas com base nos resultados obtidos na pesquisa, ficou evidente que as reações sociais começaram tardiamente, quando as crianças já manifestavam consequências das experiências evidentes, no seu desenvolvimento físico e psicossocial. “Isso indica o despreparo da comunidade, dos profissionais da educação e da saúde para identificar e notificar os casos, mais precocemente. É provável que inúmeras crianças brasileiras, jamais recebam proteção, porque não ‘perturbam’ suficientemente, estando condenadas, portanto, a ficarem sem qualquer tipo de intervenção”.

Negligência

Juliana diz que o estudo revelou, ainda, que existe uma forte tendência, na dinâmica social, de focalizar a figura da mulher/mãe como fonte de todos os problemas e também de todas as soluções, quando o assunto é cuidado com as crianças e a criação/educação dos filhos. “Até nas situações em que a criança era exposta à violência conjugal, por exemplo, não raro se observou o movimento de acusação das mães por não protegerem suas crianças, sendo ‘rotuladas’ como negligentes, sem que jamais o papel do homem fosse questionado nessa história”.

Para o estudo, Juliana utilizou dados de casos notificados ao Conselho Tutelar de uma pequena cidade do interior de São Paulo e classificados como sendo de “negligência”. Nesses casos ela identificou três grupos distintos baseados no modelo adotado. Um denominado “Negligência Confirmada” — formado pelas famílias cujas informações coletadas preencheram aos critérios pré-estabelecidos: as crianças não tinham boa parte de suas necessidades atendidas, apresentavam déficits desenvolvimentais significativos e os adultos-cuidadores não demonstravam capacidade de oferecer respostas às necessidades infantis, nem de conseguir que outros, do entorno social, viessem ao seu encontro, devido ao isolamento social. Esse grupo se diferenciou dos outros, em função do grande isolamento social em que vive a família e o número reduzido de interações positivas entre cuidadores-crianças.

O segundo grupo “Risco de Negligência”, mediante os resultados de avaliação dos critérios concluiu-se que a instalação da negligência está em curso. “Nele foi verificado que significativos problemas que as crianças apresentavam como comportamentos perturbadores, como agitação motora e quebra de regras, por exemplo, geravam reações negativas de diversos ambientes sociais, principalmente escola, e se tornavam fonte de estresse na família, concorrendo para a diminuição das interações parento-filiais, e reações de punições corporais, além de produzir o isolamento social da família”, relata Juliana.

Por último, “Negligência não-confirmada”, que reuniu famílias cujas informações não cumpriam a todos os critérios estabelecidos. O diferencial neste grupo foi o apoio social recebido. “Por mais que as famílias desse grupo também apresentassem dificuldades e suas crianças estivessem vivendo algum tipo de situação adversa, as famílias recebiam e conseguiam aproveitar da ajuda material, instrumental e/ou emocional oferecida pelo entorno leigo e/ou profissional”.

Durante 10 meses, a pesquisadora coletou informações de 12 famílias, notificadas ao Conselho Tutelar, com o objetivo de estudar a manifestação da negligência, para apreender os mecanismos de produção subjacentes e estabelecer parâmetros para avaliação dos casos.
A tese Crianças em situação de negligência: a compreensão do fenômeno e o estabelecimento de parâmetros de avaliação, foi defendida em maio deste ano e a premiação aconteceu durante XLI Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, no final de outubro, em Belém, Pará.

Mais informações: (16) 3602.3830; e-mail mbazon@ffclrp.usp.br, com a professora Marina Bazon, email julianamartins@hotmail.com, com Juliana Martins

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