Uso prolongado da nitroglicerina pode ser tóxico às células cardíacas

A nitroglicerina é o medicamento mais utilizado no tratamento da angina pectoris (dor no peito causada pela oclusão das artérias coronárias que irrigam o coração). O alívio das dores no peito causado pela NTG é decorrente do processo chamado vasodilatação, resultando no aumento do fluxo sanguíneo cardíaco.

Viviane Bazilio / Comunicação ICB

O infarto do miocárdio e suas sequelas são as principais causas de morbidade e de mortalidade na população mundial. Segundo a Organização Mundial de Saúde, mais de 7 milhões de pessoas morrem de doenças do coração a cada ano. Por este motivo, há um grande interesse no desenvolvimento de intervenções preventivas e terapêuticas, farmacológicas ou não-farmacológicas, capazes de minimizar o aparecimento e a progressão de doenças cardiovasculares.

Desde sua descoberta por Ascanio Sobrero em 1847, a nitroglicerina (NTG), também conhecida como o composto químico explosivo da dinamite, é o medicamento mais utilizado no tratamento da angina pectoris (dor no peito causada pela oclusão das artérias coronárias que irrigam o coração). O alívio das dores no peito causado pela NTG é decorrente do processo chamado vasodilatação, resultando no aumento do fluxo sanguíneo cardíaco.

Em 1970, foi descoberto que o efeito vasodilatador da NTG é mediado pelo óxido nítrico (NO) produzido na musculatura lisa dos vasos. Hoje, sabe-se que a NTG é convertida em NO nas células musculares lisas vasculares. A partir dos avanços das pesquisas sobre este assunto, em 2004, Stamler e colaboradores identificaram uma enzima mitocondrial chamada aldeído desidrogenase 2 (ALDH2) como a principal responsável pela bioativação da NTG.

Apesar de a NTG promover com eficácia a vasodilatação, através do relaxamento dos músculos lisos dos vasos, ela possui utilidade limitada, pois seu uso prolongado desenvolve no organismo tolerância à droga. Essa tolerância é desenvolvida a partir de uma ineficiência na bioativação da NTG pela ALDH2, resultando na diminuição do relaxamento dos vasos. Recentemente, foi demonstrado que a ativação seletiva da ALDH2 utilizando uma pequena molécula chamada Alda-1 pode facilitar a bioconversão de NTG em NO. Essa molécula também é capaz de minimizar os efeitos adversos causados pela intolerância à NTG.

Há muitos estudos que investigam os efeitos da NTG nos músculos lisos dos vasos, no entanto, pouco é sabido sobre seus efeitos em células contráteis cardíacas. Um grupo de pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenado pelo Prof. Dr. Julio C.B. Ferreira, e da Universidade de Stanford nos EUA, demonstraram recentemente que o uso prolongado de NTG é tóxico às células cardíacas. Animais que recebiam NTG por 16 horas consecutivas tinham maior dano cardíaco quando sofriam infarto do miocárdio. Grande parte dos efeitos deletérios causados pela NTG foi associada à inativação da enzima mitocondrial ALDH2. Os pesquisadores também demonstraram que a ativação farmacológica da ALDH2 concomitante ao tratamento com NTG reduziu o dano no coração causado pelo infarto, além de melhorar o funcionamento do coração dos animais. Foi sugerido a partir destes estudos que a tolerância à NTG aumenta os danos cardíacos após infarto do miocárdio.

Esse assunto é de extrema importância para a população, já que 8% da população mundial (cerca de 1 bilhão de pessoas) apresenta uma mutação no gene da ALDH2 que resulta na redução da sua atividade enzimática em até 95%. Essa mutação é a mesma que resulta na intolerância ao consumo de álcool ou síndrome do flushing asiático. Sabendo da suma importância da ALDH2 na a bioativação da NTG, é esperado que os portadores desta mutação tenham maior tolerância à NTG e uma diminuição na sua resposta vasodilatadora.
Em conclusão, a tolerância à NTG não deve ser vista apenas como uma perda da eficácia do medicamento, mas como uma possível piora do quadro clínico do paciente. Portanto, práticas clínicas que utilizam NTG de forma sustentada no tratamento de anginas, insuficiência cardíaca e infarto do miocárdio deveriam ser revistas, evitando a intolerância ao uso da droga e principalmente o risco do aumento dos danos em casos de isquemias. Nesse sentido, a utilização de ativadores seletivos capazes de restaurar a atividade da ALDH2 pode ser utilizada como uma terapia contra a intolerância à NTG.

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