Evento na ECA questiona protagonismo de jovens em atos violentos no Brasil

Psicólogas e psicopedagogas participam de debates sobre violência praticada por adolescentes e crimes de ódio.

Paulo Hebmüller / Jornal da USP

Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP
Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP
Aline Aleixo e Liliana Emparan discutem violência e juventude em evento na ECA

O discurso social hegemônico que transforma o adolescente em protagonista central da violência no Brasil e serve para justificar a defesa da redução da maioridade penal não se sustenta nem nas questões sociais nem nas pesquisas, defende a psicóloga e psicanalista Aline Aleixo.

“O que está por trás de discursos que colocam o jovem no topo de uma espiral de violência que vai para muito além dele?”, perguntou a psicóloga em sua intervenção – Em tempos de liberdade de expressão, reflexões sobre a maioridade penal –, numa das mesas que integraram a programação da quarta Jornada Internacional 2013: A Liberdade. A primeira etapa da jornada, promoção do Departamento de Comunicações e Artes (CCA) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e do Grupo de Psicanálise e Sociedade Etcétera e Tal, foi realizada na ECA nos dias 18 e 19 de outubro.

Aline citou o Mapa da Violência 2012, elaborado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz e editado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela), segundo o qual o número de mortes de crianças e adolescentes por causas naturais vem caindo, enquanto aquelas motivadas por causas externas, como a violência, aumentaram. Em 2000, eram registrados 11,9 homicídios a cada 100 mil crianças e adolescentes, índice que chegou a 13,8 em 2010.

Os números fazem o Brasil ficar em quarto lugar em taxas de homicídio nessa faixa etária entre 92 países pesquisados. A chance de um jovem morrer assassinado por aqui é de 50 a 150 vezes superior à de países como Inglaterra, Portugal, Espanha, Irlanda, Itália ou Egito.

Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP
Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP

Os adolescentes estão envolvidos em menos de 10% dos homicídios que ocorrem no Brasil, embora muitas vezes a ênfase do discurso social – e da cobertura da imprensa – recaia sobre eles. “Mais de 90% dos homicídios se enquadram em outros índices, e neles os jovens estão, inclusive, entre os grupos mais vitimados. Olhar para o entorno mostra que o jovem é muito mais vítima do que autor”, diz a psicóloga. “Esses dados ficam recalcados no discurso do adolescente como protagonista principal da violência que acomete o Brasil.”

Crimes de ódio

O estudo da violência no País mostra que os crimes são praticados maciçamente contra grupos específicos, aponta Aline. Predominam os assassinatos motivados por questões de gênero – como as agressões às mulheres –, contra crianças e adolescentes e contra a população negra.

“O crime de ódio não é motivado pelo furto ou pelo objetivo patrimonial, mas por questões que vão para além disso. Em muitos casos, as vítimas são mutiladas, cortadas. Ou seja, não se trata apenas de fazer desaparecer a pessoa, mas tudo aquilo que ela representa”, explica. Os dados revelam também que o número de homicídios de brancos caiu, enquanto o de negros subiu. Proporcionalmente, há 133% mais negros vítimas de homicídio do que brancos.

“É uma morte seletiva pela cor, pelo gênero, pela idade”, diz a psicóloga. Portanto, defende, o adolescente é responsabilizado “por questões que lhe são imputadas por uma violência que tem motivações muito anteriores à sua própria existência enquanto sujeito cultural e histórico”.

Aline Aleixo recomendou um vídeo no qual o professor da Unicamp Leandro Karnal fala sobre o ódio velado que permeia as relações sociais brasileiras. O programa faz parte da série Café Filosófico da CPFL Cultura e está disponível na internet pelo link.

Justiça especializada

Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP
Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP

Para a psicóloga, que ainda estudante trabalhou na então Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), atual Fundação Casa, no imaginário social o adolescente é comumente visto como marginal, delinquente, drogado, traficante etc. Castigos físicos e outras formas de punição violenta aos jovens são aceitos como naturais, enquanto estatutos e leis que tratam dessa faixa etária são considerados inadequados ou desatualizados, incapazes de responder às demandas da sociedade.

Outro item desse discurso sustenta que em muitos países a maioridade penal começa antes dos 18 anos. Aline apresentou dados de 53 países – não incluindo o Brasil – para mostrar que 42 deles (praticamente 80%) adotam a maioridade nessa idade. Boa parte também tem legislação e sistema de Justiça especializados em relação aos infratores com menos de 18 anos. É o caso brasileiro, onde o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê medidas socioeducativas de responsabilização a partir dos 13 anos de idade.

A psicóloga utiliza o conceito psicanalítico do retorno do recalcado, nesse caso como ato de tantas violências não elaboradas e consideradas inaceitáveis, para dizer que ele parece encontrar ancoragem na adolescência. “Dessa forma, essa condenação social tácita aplicada ao adolescente mantém a sociedade alheia à responsabilidade pela violência societária, muito mais ampla e complexa”, diz. Cabe à sociedade, defende, assumir os números que desmentem o protagonismo dos adolescentes na violência e considerar todos os lados da questão para tomar para si a sua responsabilidade.

Ditaduras e Traumas

A mesa também contou com a participação da psicanalista e psicopedagoga Liliana Emparan, que atua no projeto Clínica do Testemunho – iniciativa da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça que forma núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados pela violência do Estado durante a ditadura militar.

Foto: Marcos Santos / USP Imagens
Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Ao falar sobre Coerção à liberdade na ditadura e os efeitos na subjetividade frente às possibilidades de construir a liberdade de narrar a experiência traumática, Liliana ressaltou que o silenciamento social imposto pelo regime traz consequências coletivas que vão muito além das sequelas nos indivíduos presos, torturados ou que viram desaparecer amigos e familiares.

“Os crimes trazem consequências para as gerações futuras. Os filhos dos presos políticos têm marcas muito fortes dessa violência”, diz. Do ponto de vista da ação do Estado, a polícia continua praticando tortura e desaparecimento de pessoas – o caso Amarildo, no Rio de Janeiro, é apenas um dos muitos exemplos atuais. “Essa é uma herança trágica e maldita da ditadura”, afirma a psicanalista.

Durante o debate, uma professora da plateia lembrou que a imposição do esquecimento e de um discurso oficial que contradiz a realidade também ajuda a traçar conexões entre os três séculos de escravidão na história brasileira e a violência da qual os jovens negros são vítimas na atualidade, conforme mostrou a exposição da psicóloga Aline Aleixo.

O projeto da Clínica do Testemunho no Instituto Sedes Sapientiae, ao qual Liliana está ligada, atua principalmente em três frentes: atendimento clínico, em grupo ou individual; capacitação e formação de agentes no Judiciário e na área da saúde; e pesquisa, com produção de conhecimento a partir do atendimento dessa população. Anistiados políticos e seus familiares podem se inscrever para os grupos terapêuticos ou para atendimento psicológico individual pelos telefones (11) 3866-2736 e 3866-2735, ou pelo e-mail clinicatestemunhosedes@sedes.org.br.

A 4ª Jornada Internacional 2013: A Liberdade continua nesta sexta e sábado (25 e 26 de outubro), na Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais.

Mais informações: site http://www.petcetal.blogspot.com.br

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