“O país das Mil Colinas” resgata história do último genocídio do século 20

A jornalista e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Popular e Alternativo (Alterjor) da ECA, Andréia Terzariol Couto, fez duas viagens ao país e mais de 40 entrevistas para escrever o livro.
Foto: Andréia Terzariol Couto
Foto: Andréia Terzariol Couto

Em 2014 completam-se duas décadas dos assassinatos em massa cometidos em Ruanda. Mais que um fato qualquer, adicionado a uma imaginária linha do tempo da História, tal genocídio não precisou de mais que três meses para deixar um milhão de mortos. O livro O país das Mil Colinas (Editora Appris, 2013), de Andreia Terzariol Couto, retrata o extermínio a partir de pesquisa bibliográfica e relatos dos que ficaram.

Jornalista e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Popular e Alternativo (Alterjor) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Andréa conta que fez duas viagens ao país e mais de 40 entrevistas para escrever o livro. “Sempre me interessei pelo tema e, em 2002, comecei minha pesquisa na Biblioteca de Estudos da Linguagem, da Unicamp. Dois anos depois, já tinha esgotado todo o material disponível. Comecei, então, a tentar contatos em Ruanda”, diz.

Caminhos

O livro é uma colcha de retalhos que resgata fatos da história de Ruanda, junto com relatos do que a autora ouviu sobre o genocídio e sua percepção de como está a vida no país depois da tragédia. “O genocídio tem raízes no século 19, na época da colonização, e por isso é importante retratar como era o país antes do colonizador”, disse.

Foto: Andréia Terzariol Couto
Foto: Andréia Terzariol Couto
Foto da Universidade Nacional de Ruanda, tirada em uma das viagens da autora

Os relatos foram obtidos nas duas viagens que a jornalista fez ao país, especificamente para a pesquisa, entre 2004 e 2006. Cada temporada durou dois meses e ela ficou hospedada em casas de famílias, igrejas e alojamentos. “Enviei uma carta de apresentação para o cônsul de Ruanda na Escócia. Ele me colocou em contato com pessoas que tinham acesso aos arquivos da Universidade Nacional de Ruanda”, conta a jornalista. Como o país não tem representação diplomática no Brasil, o embaixador ajudou Andreia com o visto para a viagem.

A autora optou por realizar entrevistas informais, em tom de conversa. Isso porque quando ela chegou em Ruanda, em 2004, o genocídio era ainda recente – e nem todos aceitavam com facilidade falar sobre as lembranças doloridas da época. “O clima de conversa amenizava as lembranças”, explica.

O clima de conversa
amenizava as lembranças.

Andreia conversou com pessoas que eram crianças durante o genocídio e cresceram exiladas. Além do contato com a população, a jornalista pesquisou os acervos da universidade local.

Faces do genocídio

Foto: Fanny Schertzer / Wikimedia Commons
Foto: Fanny Schertzer / Wikimedia Commons
Memorial do genocídio em Nyamata

Dois grupos étnicos habitam Ruanda: a maioria hutu e a minoria tutsi. O estopim do massacre aconteceu quando o avião que levava o presidente Juvenal Habyarimana, um hutu, foi derrubado quando sobrevoava a capital Kigali, em abril de 1994. Os tutsis foram considerados culpados pelo ataque. O incidente deu origem a uma onda de violência que se espalhou pelo país. A maioria dos mortos eram da etnia tutsi e a maioria dos executores eram da etnia hutu.

Ruanda convivia com a tensão étnica desde o período colonial. Os colonizadores belgas acreditavam que os tutsis eram superiores aos hutus, e esse cenário de desigualdade permaneceu o mesmo ao longo dos anos.

O governo hutu armou grupos da população que apoiavam o governo e o exército com facões e incitou a violência dos hutus contra os tutsis. Em pouco menos de três meses, mais de um milhão de pessoas foram mortas.

Foto: TKnoxB / Wikimedia Commons
Foto: TKnoxB / Wikimedia Commons
Órfãos do extermínio em Kigali, no ano 2000

Mas a ação do governo foi além da distribuição de armas. Segundo Andreia, a mídia – o rádio, principalmente – teve papel preponderante na disseminação da campanha racista iniciada pelas autoridades hutus. “O genocídio foi o ápice de outras agressões que já haviam acontecido antes. As pessoas estavam de sobreaviso, mas ninguém esperava um ataque na proporção do que aconteceu”, conta Andreia.

Ninguém esperava um ataque na proporção do que aconteceu.

De maneira geral, não houve intervenção internacional durante os ataques. A França mandou aviões para Ruanda, mas para resgatar apenas cidadãos franceses que estavam no país. Andreia acredita que se países da Europa como França ou Bélgica tivessem interferido, a violência não teria sido tão desenfreada.

A situação de Ruanda quando Andreia esteve lá, porém, já era outra. Funcionários do alto escalão do governo foram julgados e condenados em um tribunal internacional criado pela ONU. Cidadãos comuns foram enviados para as cadeias locais. Aconteceram também julgamentos em tribunais comunitários, seguindo a tradição local. Apenas depois do massacre o governo assumiu oficialmente que o país era composto por tustis e hutus.

Foto: Fanny Schertzer / Wikimedia Commons
Foto: Fanny Schertzer / Wikimedia Commons
Memorial do genocídio em Kigali

Foi, então, adotada uma política para combater a segregação entre as etnias. “Enxergo um esforço de reconstrução nacional. Parece que não há rancor. Eles querem seguir em frente”, diz Andreia.

Enxergo um esforço de reconstrução nacional. Eles querem seguir em frente.

A pesquisadora atribui à religião um papel importante nesse discurso conciliatório entre as etnias. “O povo ruandês é muito religioso e após o genocídio eles se voltaram para a religião como forma de apaziguar seus corações. O discurso religioso do perdão foi muito importante”.

Além do lançamento do livro, faz parte dos planos do Grupo Alterjor realizar um evento para lembrar os 20 anos do genocídio.

O País das Mil Colinas pode ser adquirido pelo site da editora.

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