Libaneses e sírios imprimem identidade árabe a bairros de SP

A partir do final do século 19, imigrantes criaram espaços que funcionam até hoje como lugares de identidade.

Júlio Bernardes / Agência USP de Notícias

A trajetória e os locais percorridos pelos imigrantes vindos do Líbano e da Síria na cidade de São Paulo são mostrados em uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. De acordo com o estudo, ao se fixarem, comercial e residencialmente na região da Rua 25 de Março (Centro de São Paulo), a partir do final do século 19, o grupo criou espaços que funcionam até hoje como lugares de identidade. Esse mesmo processo ocorreu em outros bairros onde se estabeleceram posteriormente, como o Paraíso e Vila Mariana, na zona sul da cidade, e no Brás. A pesquisadora Juliana Khouri, autora do trabalho, analisou estabelecimentos comerciais, igrejas, clubes esportivos, associações culturais e entidades beneficentes fundados pelos imigrantes.

Juliana também fez um levantamento no comércio da região da rua 25 de Março e do Brás e realizou entrevistas com integrantes da colônia, relacionados aos bairros que se pretendia estudar. A entrada de imigrantes libaneses e sírios no Brasil começou em 1871 e os primeiros registros de sua presença na cidade de São Paulo datam de 1880. “Eles se estabeleceram na região da praça do mercado, próximo ao antigo Mercado Municipal, que ficava situado na esquina da ruas 25 de Março e General Carneiro, no Centro”, conta Juliana. A escolha da região se deveu aos baixos alugueis dos imóveis, à sua posição estratégica entre o centro da cidade e a estação ferroviária, à proximidade do Mercado e, principalmente, ao fato de lá terem se estabelecido os primeiros imigrantes árabes, o que atraiu os demais para a região. “Ao contrário de outras correntes migratórias, a vinda dos libaneses e sírios não foi subvencionada. Esses imigrantes vieram de forma espontânea, com seus próprios recursos”.

Os libaneses e sírios que migraram eram geralmente pequenos proprietários de terras. “Ao chegarem ao Brasil, esses imigrantes encontraram um sistema agrário baseado em latifúndios. Como não tinham capital para comprar terras e viam pouca perspectiva econômica no trabalho rural, optaram pelo comércio. A atividade comercial trazia um retorno financeiro rápido e permitia que trabalhassem por conta própria. Nessa época também havia uma demanda por bens de consumo não duráveis, como tecidos”, afirma. No início, trabalhavam como mascates, vendendo pelas ruas e cidades do interior, e levavam os produtos em baús semelhantes a armários, o que deu origem a palavra “armarinhos”, que hoje designa o comércio de miudezas. “Nas primeiras levas de imigrantes, havia muitos homens solteiros, que tinham intenção de enriquecer e voltar para seus lugares de origem. Na medida que conseguiram acumular capital, a ideia de retornar se tornou algo mais distante. Assim, foram abrindo lojas na região da 25 de Março, o que acabou por atrair mais sírios e libaneses”.

Entre 1905 e 1910, iniciou-se um processo de dispersão residencial da rua 25 de Março. Inicialmente, os imigrantes moravam e trabalhavam na 25 de Março e adjacências, nas atuais ruas Basílio Jafet, Abdo Schaim, Afonso Kherlakian e Carlos de Souza Nazareth, entre outras. “Nos primeiros anos, eles moravam na parte de cima das lojas. Entretanto, conforme os negócios progrediram, começaram a transferir suas residências para as regiões da Vila Mariana, Paraíso e Ipiranga, principalmente depois de 1914”, aponta Juliana. “É interessante observar que as vias da região da 25 de Março possuíam outros nomes, mas com o tempo, receberam denominação de pessoas da colônia, reforçando a identidade árabe da área. Já o dia 25 de março passou a ser a data oficial da comunidade árabe”.

Gerações de imigrantes

A pesquisadora ressalta que no caso do Ipiranga, não houve a presença de um núcleo de imigração árabe no local, mas sim o estabelecimento de uma única família, os Jafet, que se dedicavam a fabricação de tecidos e construíram suas residências no bairro. “Os primeiros imigrantes eram principalmente cristãos, ligados a igrejas orientais”, diz. A partir de 1920, começou a chegar um número maior de muçulmanos. “A maioria dos que migraram nessa época vinham do Vale do Bekaa e do sul do Líbano, de maioria muçulmana. Com a Guerra Civil no Líbano, entre 1975 e 1990, houve migração tanto de islâmicos quanto de cristãos. Hoje, há predomínio de muçulmanos”.

Os sírios e libaneses que chegavam, principalmente, a partir de 1940, começaram a se fixar também no Brás, devido aos preços mais baratos dos imóveis e à proximidade desta área com a 25 de Março e entorno. “Nesse bairro, há tanto imigrantes árabes muçulmanos quanto cristãos, enquanto no Paraíso, por exemplo, predominam os cristãos, diferença que se deve às fases da imigração”, observa Juliana. A partir do levantamento de 824 estabelecimentos comerciais no Brás, a pesquisadora constatou que 26,42% pertencem a libaneses e 1,66% a sírios. “A maioria se dedica ao comércio de calças jeans — 62,43% das lojas dos sírios e libaneses existentes no bairro — concentrando-se nas ruas Maria Marcolina, Miller, Joli, Xavantes, Maria Joaquina, Mendes Júnior e Barão de Ladário”.

Entre as 621 casas comerciais na 25 de Março e adjacências, a pesquisa verificou que 12,65% pertencem a libaneses, 7,46% a sírios, 1,26% a sírio-libaneses, 2,07% de armênios (que passaram pelo Líbano e Síria antes de chegarem ao Brasil) e 0,62% a egípcios, grupo que começou a se estabelecer a região depois de 2008. “Embora seja um contingente menor do que os 17,21% de lojas pertencentes a chineses e 9,54% de coreanos, a presença ainda é muito grande entre os proprietários de imóveis, pois em muitos casos, quando os descendentes se desinteressam em seguir o negócio dos pais, ingressam no setor imobiliário, alugando espaços para os comerciantes coreanos e chineses. O número de mini-shoppings na região aumentou de 18, em 2008, para 34, em 2013, por exemplo”, diz. “Os que permanecem no comércio se dedicam principalmente a venda de tecidos, armarinhos, brinquedos, artigos de época (fantasias) e cama, mesa e banho”.

Juliana ressalta que o trabalho no comércio funcionou como um local de hospitalidade para os imigrantes da primeira geração. Além disso, eles desenvolveram uma sociabilidade própria nessas áreas comerciais e estas regiões se transformaram em lugares de identidade para o grupo. “Próximo às lojas da 25 de Março e arredores, começaram a surgir restaurantes árabes, além da Igreja Ortodoxa da Anunciação a Nossa Senhora, na qual surgiram muitas das instituições culturais e esportivas da comunidade. Ainda hoje é comum, tanto na 25 de Março quanto no Brás, os imigrantes e descendentes tomarem café e almoçarem juntos. Muitas lojas recebem nomes de família ou alguma outra denominação que faça referência ao local de origem, elas também exibem imagens de santos cristãos e trechos do Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos. Mesmo quem não mora mais ali, costuma ir às igrejas e mesquitas, e fazer compras de produtos árabes nestas áreas, uma forma de se reconhecerem e de se sentirem em casa”, diz. As mesquitas muçulmanas, mais comuns no Brás e no Pari, também abrigam sociedades beneficentes. “Na região do Paraíso, as igrejas, restaurantes, clubes e as ruas com nomes de personalidades da colônia fazem com que o bairro, assim como o Brás e a área da 25 de Março, seja um lugar de identidade para as famílias de imigrantes”.

Mais informações: email julianamkhouri@gmail.com, com Juliana Khouri

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