Revista Placar associou futebol-arte a mobilização política, aponta estudo da FFLCH

“Placar” via Seleção Brasileira de 1982 como meio para redemocratização por representar identidade nacional.

Júlio Bernardes / Agência USP de Notícias

Nas páginas da revista “Placar”, a Seleção Brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1982, na Espanha, era parte importante da formação da identidade nacional e, por essa razão, um instrumento de mobilização política e redemocratização do Brasil após anos de governos autoritários. Esta conclusão vem após análise de textos e fotos — publicados pela revista durante o torneio — feita pelo historiador e professor Max Filipe Nigro Rocha. Em sua dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, ele identifica a crença da revista na união do futebol-arte, considerado a essência futebolística brasileira e recuperado pela Seleção, com a racionalidade gestão esportiva-empresarial praticada na Europa.

O estudo Em busca do feitiço perdido – A revista Placar entre a Seleção Brasileira de 1982, a Revolução São-Paulina e a Democracia Corintiana (1979 -1984), considera o semanário esportivo, então comandado pelo jornalista Juca Kfouri, um “aparelho privado de hegemonia”, responsável pela construção de um “novo consenso político”,  conforme os termos utilizados pelo cientista político e filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937).  O consenso superaria o atraso estrutural existente no futebol brasileiro da época. “Esse atraso seria fruto de uma ‘herança maldita’ da Ditadura Militar [1964 a 1985] e que teria gerado uma cisão entre a nação e o esporte nacional de maior destaque, o futebol”, afirma Rocha.

“Portanto, a Seleção de 1982 – chamada de ‘Seleção da Abertura’ – e as equipes do São Paulo de 1981 a 1982, e do Corinthians de 1982 a 1983, representariam, cada qual com suas peculiaridades, o amálgama tão desejado pela publicação entre a tradição brasileira do futebol-arte e a modernidade representada pela implantação de um modelo europeu de gestão esportiva-empresarial”. O aspecto inovador apresentado pela revista é o deslocamento do conceito de futebol-arte. “Se, de acordo com os pesquisadores sobre o esporte, o futebol-arte seria uma essencialização da prática esportiva e entendido como uma forma-representação da sociedade, o semanário esportivo reorganiza esse princípio ao associá-lo à prática política, seja de jogadores, técnicos ou jornalistas”, ressalta o historiador.

“Portanto, para ‘Placar’, o futebol não podia ser visto como um instrumento de alienação política. Muito pelo contrário, é com a bola nos pés que a politização da sociedade e a redemocratização ocorreriam”. O material analisado foi a cobertura realizada pela revista Placar entre os anos de 1979 e 1984 sobre a Seleção Brasileira, o São Paulo, durante a implantação de uma gestão empresarial que foi denominada pela revista como “Revolução São-Paulina”, e o Corinthians durante a consolidação da “Democracia Corintiana”, movimento realizado por jogadores que questionavam as estruturas de poder no clube. O trabalho foi orientado pelo professor Flávio de Campos, do Departamento de História da FFLCH, e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens) da USP.

Dicotomia

Rocha observa que a cobertura de “Placar” sobre a Copa de 1982 apresentava uma dicotomia. “De um lado, apresentava-se o futebol europeu como modelo de administração e de racionalidade empresarial a ser implantado em território nacional. Contudo, essa tradição estrangeira deveria ser tomada como referência em sua forma, mas não em sua essência”, explica. “A Copa também representava o retorno vigoroso do feitiço perdido durante os Anos de Chumbo aos gramados nacionais, seduzindo novamente a nação, que voltava a se reconhecer nos campo. Desse modo, ‘Placar’ reconhecia novamente os elementos fundadores da identidade nacional presentes na Seleção Brasileira e reorganizava-os a ponto de considerá-la como a portadora das características do passado e do futuro”.

A Seleção de 1982 reconectava, de acordo com “Placar”, a nação com o futebol. Retratada em diversos momentos como uma reencarnação da Seleção de 1970, suprassumo da representação do futebol-arte, ela também era responsável pelo anúncio dos novos tempos democráticos devido à presença de jogadores que representavam tanto a tradição como a modernidade, como Sócrates, Zico, Serginho Chulapa, Toninho Cerezo, Júnior e Falcão. “O apoio à Seleção e a Telê Santana, treinador à época, eram irrestritos e isso podia ser percebido pelo grau de relacionamento dos jornalistas com a Seleção e pelo teor positivo e ufanista das reportagens”, conta o historiador. “A gestão da recém fundada Confederação Brasileira de Futebol (CBF), sob o comando de Giulite Coutinho, representava aos olhos de Placar a superação dos atrasos estruturais e do domínio de uma tecnocracia veiculada à ditadura militar que eram representadas pela antiga Confederação Brasileira de Desportos (CBD)”.

Rocha afirma que a derrota e a eliminação do Brasil da Copa no jogo com a Itália, em 5 de julho de 1982, apresentada como a “Tragédia do Sarriá”, fez com que Placar e seus jornalistas ficassem inconsoláveis a ponto de narrarem as suas próprias lágrimas nos textos. “A desclassificação do Brasil não era uma mera queda futebolística, mas representava o risco do naufrágio de um projeto político que entendia que o futebol como elemento formador da identidade nacional serviria de instrumento de mobilização política e de redemocratização”, diz. “Se, pontualmente, a publicação buscava culpados aqui e acolá, a crença de que a reunião da essência futebolística brasileira – o futebol-arte – com a racionalidade empresarial não se via abalada. Tanto é assim que o semanário direciona sua atenção à gestão empresarial implantada no São Paulo e, em seguida, à ‘Democracia Corintiana’, que parecia representar a união perfeita entre democracia e racionalidade empresarial”.

A derrota brasileira em 1982 é atribuída ao acaso segundo a revista, à injustiça dos deuses do futebol que, embora reconhecessem a superioridade do time nos gramados, não recompensaram a Seleção Brasileira com o merecido título. “Ou seja, a derrota não poderia ser explicada por nenhum critério racional e nem deveria abalar a trajetória de desenvolvimento do futebol que havia sido traçada”, enfatiza o historiador. Rocha faz parte do grupo de editores do site Ludopédio, página especializada em analisar o futebol sob uma perspectiva acadêmica.

Mais informações: email maxnigrorocha@hotmail.com, com Max Filipe Nigro Rocha

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