De Platão a Marx, biblioteca da FEA abriga 430 mil títulos

Com a doação de quase R$ 8 milhões feita por empresas e pessoas físicas, FEA inaugura biblioteca com 430 mil títulos, que inclui o acervo do professor Antonio Delfim Netto

Roberto C. G. Castro / Jornal da USP

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Foto: Francisco Emolo / Jornal da USP

O professor Antonio Delfim Netto – ex-ministro da Fazenda e um dos maiores economistas do Brasil – pagou apenas 6.000 réis para fazer todo o curso de Economia na hoje chamada Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, que ele concluiu em 1951. Foi o que gastou para pagar o selo postal e enviar pelo Correio a inscrição no curso, após passar no vestibular. “Todo o restante, o papel, o lápis, a borracha que eu usei nas aulas, foi tudo de graça. Eu não paguei nada.”

Essa foi uma das justificativas de Delfim para doar à FEA talvez o seu maior bem material – uma biblioteca com mais de 290 mil registros, que incluem cerca de 100 mil livros, 90 mil periódicos e outros 100 mil artigos, reunidos no que o professor e sua equipe chamam de “compêndios” – volumes encadernados que contêm textos sobre um mesmo tema, extraídos de diferentes publicações.

Antes instalado numa chácara em Cotia, na Grande São Paulo, o acervo doado pelo professor compõe agora a nova biblioteca da FEA, que foi inaugurada no dia 2 de julho passado. A cerimônia de inauguração contou com a presença do vice-reitor Vahan Agopyan – representando o reitor Marco Antonio Zago –, do então diretor da faculdade, Reinaldo Guerreiro, do professor Delfim Netto e da Professora Emérita da FEA Diva Benevides Pinho, que através do Instituto Carlos e Diva Pinho (Funcadi) doou recursos para a construção de um dos dois anfiteatros da nova biblioteca.

Máquina de escrever

Ocupando o mesmo lugar da antiga biblioteca, que foi praticamente toda demolida, o novo espaço da FEA passa a abrigar 430 mil títulos, distribuídos em quase 10 mil metros lineares de estantes, numa área total de 5.290 metros quadrados, em dois pavimentos. Com cinco salas de estudo em grupo e 320 mesas de estudo individual, a biblioteca deverá passar a ter uma frequência anual estimada em mais de 530 mil pessoas, contra os cerca de 350 mil frequentadores verificados no ano passado.

A nova biblioteca da FEA ostenta ainda duas novidades que dão toques de requinte ao lugar. Uma delas é a sala Design Thinking, que tem o objetivo de estimular a reflexão, a criatividade, a colaboração e a troca de conhecimentos entre os frequentadores. Com mobiliário e equipamentos que podem ser mudados de acordo com as necessidades dos usuários, é inspirada em ambiente semelhante instalado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

A outra novidade é o teto de vidro da biblioteca, construído num formato que reproduz proporcionalmente as mesmas dimensões da pirâmide de Quéops, no Egito. Além de economizar energia ao permitir que o ambiente seja iluminado pela luz solar, o teto reflete imagens da Cidade Universitária: olhando para a estrutura em determinada hora do dia e de acordo com a posição do Sol, é possível contemplar, refletida pelo vidro, a imagem da Praça do Relógio ou da Escola Politécnica, por exemplo, que ficam nas imediações da FEA.

O acervo do professor Delfim encontra-se ainda em catalogação – trabalho que deve se estender até o fim do ano – e deverá ser aberto para consulta com algumas restrições. Por isso, ele está alojado numa área separada das demais obras da biblioteca. Ali, os livros repousam em estantes deslizantes, adquiridas de uma empresa holandesa. A fim de economizar espaço, as estantes ficam juntas, encostadas uma ao lado da outra. Para consultar as obras, basta dar um comando e elas se movem, abrindo passagem para o usuário e dando acesso a milhares de volumes em várias áreas do conhecimento, desde economia e matemática até história, literatura, filosofia e arte.

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Foto: Francisco Emolo / Jornal da USP

Próximo ao acervo, encontra-se a sala de Delfim Netto, que reproduz o mesmo ambiente de que o professor desfrutava em sua chácara em Cotia. Do antigo escritório foram trazidos a ampla mesa, a cadeira, os tapetes e a máquina de escrever, em que Delfim ainda compõe seus artigos. As paredes são decoradas com os diplomas que o professor recebeu ao longo da carreira, incluindo o título de Bacharel em Economia pela então denominada Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (FCEA) da USP, datado de 1952, o Cavaliere di Gran Croce, da Itália, obtido em 1972, a Ordre National du Mérite, da França, outorgada em 1976, e La Gran Cruz, concedida pelo rei Juan Carlos, da Espanha, em 1984.

Investimento

Colocar à disposição da sociedade uma biblioteca desse nível – a maior da América do Sul nas áreas de economia, administração, contabilidade e atuárias – foi uma tarefa árdua e cara. No total, a nova biblioteca da FEA recebeu investimentos de mais de R$ 14,4 milhões. Desse total, R$ 6,7 milhões vieram do Orçamento da USP e nada menos do que R$ 7,7 milhões foram obtidos graças a doações feitas por empresas, pessoas físicas, professores, funcionários, alunos e ex-alunos da faculdade – o que constitui uma das mais bem-sucedidas iniciativas de financiamento do ensino superior público do Brasil nos últimos tempos.

Foi justamente esse sucesso que o então diretor da FEA, Reinaldo Guerreiro, destacou em seu discurso na cerimônia de inauguração da biblioteca, no dia 2 de julho. Ele iniciou sua fala agradecendo ao “Pai Celestial” – “que tem me provido de tudo de que preciso” – e, em seguida, fez referência às mais de 560 pessoas físicas e às várias empresas que doaram recursos para os dois projetos que estavam sendo comemorados naquele momento – o de Expansão e Modernização da Biblioteca e o de Resguardo da Doação do Acervo do Professor Antonio Delfim Netto. Toda essa infraestrutura, disse, está a serviço da missão da FEA: ajudar a modelar cidadãos que possam contribuir efetivamente para o progresso da sociedade brasileira. “A FEA tem feito isso ao longo dos seus 68 anos de existência”, acrescentou.

Delfim Netto também falou da missão da FEA em seu discurso. Destacou que os economistas têm uma função fundamental no desenvolvimento da sociedade: “O papel do economista é reduzir o tempo de trabalho de cada um de nós, para deixar tempo livre para que cada um de nós construa a sua humanidade”. Lembrou que o único caminho para uma sociedade civilizada é “uma combinação da urna com o mercado” e que não há como apressar esse processo. “Sempre que o homem tentou um ‘curto-circuito’ no seu desenvolvimento, isso terminou em barbárie.” E concluiu incentivando os professores e alunos da FEA a continuar a pesquisar, a absorver conhecimentos e a transmitir a ideia de que o desenvolvimento se faz ao longo do tempo. “A sociedade acredita, investe em nós, e a única forma de nós retribuirmos isso é dando a ela alguma esperança de que vamos, sim, construir uma sociedade decente. Os economistas têm um papel decisivo nisso.”

Após os discursos, Delfim Netto – que tem 86 anos e é Professor Emérito da FEA, onde começou a lecionar em 1952 e em 1983 tornou-se professor titular de análise macroeconômica – foi convidado a conhecer as novas instalações da biblioteca. Percorreu os corredores, observou os livros, entrou na sua sala, sentou-se à mesa, deixou-se fotografar com o neto Rafael, de 4 anos, no colo e depois concluiu, satisfeito com o que viu: “Excelente. Magnífico”.

De Platão a Dante, Shakespeare e Marx

Um dos milhares de livros doados à FEA pelo professor Antonio Delfim Netto traz uma dedicatória e a assinatura feitas à mão pelo autor alemão. A dedicatória é simples – Meinem Freunde Peter Imandt (Ao meu amigo Peter Imandt) –, mas a assinatura é de um dos mais importantes pensadores dos tempos modernos: Karl Marx, o criador do socialismo científico. O livro, uma edição fac-símile da primeira edição de Das Kapital (O Capital), de Marx, publicada em 1867, é uma das preciosidades que compõem o acervo de Delfim.
Há muitas outras. Por exemplo, os 28 volumes originais da Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, a célebre Enciclopédia editada no século 18 por Denis Diderot e Jean D’Alembert, com artigos escritos por 130 colaboradores – entre eles, Voltaire, Rousseau e Montesquieu. Além dessa que é considerada a “mãe de todas as enciclopédias”, o acervo conserva os 32 volumes da 11ª edição da Encyclopaedia Britannica, lançados em 1910 e 1911, entre outras publicações do gênero.

Mas o acervo de Delfim não é uma coleção de bibliófilo, que se preocupa em preservar raridades. Trata-se, antes, de uma biblioteca que contempla os mais variados assuntos e é semanalmente atualizada com novos volumes, enviados pelo próprio professor.
Na área da economia, tem-se à disposição, por exemplo, as obras dos grandes economistas modernos, desde Adam Smith e David Ricardo até Thomas Malthus, Karl Marx, Léon Walras e John Maynard Keynes. Há uma seção inteira dedicada à matemática, onde se pode encontrar a Histoire des Mathématiques, publicada pela editora Blanchard, de Paris, em quatro volumes.

Em filosofia, as obras completas dos pensadores gregos Platão e Aristóteles e do francês René Descartes também estão disponíveis. Exemplares antigos e recentes da Divina Comédia, de Dante Alighieri, de D. Quixote, de Miguel de Cervantes, das peças de Shakespeare e dos romances de Machado de Assis estão nas prateleiras dedicadas à literatura universal. Tomás de Aquino e outros pensadores cristãos figuram na seção de teologia. Há também livros sobre biologia, arqueologia, história, física e psicologia, entre outras áreas. O idioma predominante é o inglês. “Esta biblioteca reflete a variedade de interesses do professor Delfim, que fundamentalmente é um grande estudioso”, afirma o administrador do acervo de Delfim Netto, Luiz Eduardo Frin, que há 18 anos trabalha com o professor, é formado pela FEA, faz doutorado em Teatro na Unesp e já atuou em peças como O Fingidor, de Samir Yazbek.

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Foto: Francisco Emolo / Jornal da USP

Compêndios

Com os chamados “compêndios”, os usuários da nova biblioteca da FEA contam com uma fonte de informação que, de outra maneira, seria de difícil acesso. Acontece que esses volumes, encadernados em capa dura, reúnem artigos das mais variadas procedências. Eles surgiram de um costume antigo de Delfim Netto, que, ao ler um determinado artigo, sai em busca dos textos citados nele. Esses textos são juntados e formam como que um “dossiê” sobre um assunto específico.

Tome-se como exemplo um dos milhares de compêndios do acervo de Delfim, intitulado Infrastructure Reforms. O texto que abre o volume é “Do infrastructure reforms reduce the effect of corruption?”, de Liam Wren-Lewis, publicado num boletim do World Bank em 2013. Os artigos citados nesse texto foram recolhidos e encontram-se agora no mesmo volume. “Os compêndios fornecem um material muito importante para os pesquisadores”, analisa Frin. “Como não se trata exatamente de livros ou de periódicos, ainda está sendo analisado como eles vão ser inseridos no banco de dados da USP”, destaca Frin, referindo-se ao Dedalus, a ferramenta virtual do Sistema Integrado de Bibliotecas (SIBi) que cataloga o acervo de todas as 43 bibliotecas da Universidade.

Além dos compêndios, o acervo doado à FEA traz outra peça bastante pessoal de Delfim Netto. É o caderno que o professor usou ainda como estudante da FEA, no curso de Análise Matemática, ministrado em 1948. A primeira anotação do caderno data de 26 de novembro daquele ano: “Na análise matemática, os conceitos de unidade e pluralidade de conjuntos são fundamentais. Os seres que constituem um conjunto denominam-se elementos”, lê-se numa elegante caligrafia.

Ao percorrer a biblioteca de Delfim, descobre-se uma provável fonte das tiradas bem-humoradas com que o professor, em suas entrevistas, costuma divertir os jornalistas. É que o seu acervo inclui várias obras com máximas, provérbios e citações, em diferentes idiomas. Elas sempre dispõem de um ditado que pode ser útil para descrever e alertar sobre a situação política, econômica e social do País. Como este, extraído do Diccionario de Aforismos, Proverbios y Retranes, adequado para o período que antecede as eleições presidenciais no Brasil: Con la cuchara que elijas, con aquélla comerás.

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