Encontro de gerações: programa voltado à terceira idade completa 22 anos

Programa Universidade Aberta à Terceira Idade, idealizado pela professora Ecléa Bosi, já recebeu cerca de 120 mil alunos.

Paulo Hebmüller / Jornal da USP

Idosos que descobrem novos talentos ou que pela primeira vez na vida conseguem estudar – ao lado dos jovens da graduação – são recebidos pela USP no vigésimo segundo ano da Universidade Aberta à Terceira Idade.

Foto: Natália Dourado/EACH Lorem ...............
Foto: Natália Dourado/EACH

Aos 68 anos, a aposentada Bartira Nunes Martins anuncia: “Sou idosa e estou querendo virar ‘global’”. A brincadeira vem logo depois de uma reflexão bem mais séria: “Muitos idosos se isolam. É difícil falar: ‘sou idoso e estou esperando a morte chegar’”. Dona Bartira, definitivamente, não está nessa. Ativa em grupos da Igreja na sua região, na zona leste de São Paulo, há quatro anos ela conheceu também o programa Universidade Aberta à Terceira Idade (Unati), mantido pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP. De lá para cá, vem participando de cursos e oficinas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), na USP Leste. Sua veia “global” ganhou os palcos na Unati a partir das atividades de teatro (“o que mais amo”, diz), que renderam convites para participar de trabalhos de grupos profissionais e apresentar suas poesias em escolas e centros comunitários. “Foi a USP que proporcionou isso”, comenta.

Maria de Lourdes Palermi, costureira aposentada que completa 67 anos neste mês, só descobriu que a USP estava também na zona leste ao ser convidada por um companheiro do grupo de caminhada no Shopping Tatuapé para conhecer a Unati. Viúva há 40 anos, nos últimos cinco Maria de Lourdes encontrou no programa – especialmente no teatro – recursos e forças para ajudar a encarar também a perda de um filho dependente químico. “Isso me limpou a cabeça e nunca mais saí”, conta. Tanto não saiu que agora ela até entrou no Youtube como atriz. Um dos vídeos do qual participou é Vovó – Saudades da bengala, produzido pelas alunas do bacharelado em Gerontologia da EACH Gabriela Cipolli, Karen Sato, Maria Clara Antunes e Suzanne Alves, que pode ser assistido neste endereço.

Nesta semana, a neoatriz estará no grupo dos idosos que vão recepcionar os novos alunos da EACH. “O castigo dos calouros é aturar os velhos”, brinca. Promover a troca de experiências com pessoas da mesma idade e também de gerações diferentes, como os jovens que ingressam na USP, é um dos objetivos da Unati, explica Deusivania Vieira da Silva Falcão, professora do curso de Gerontologia. Para a docente, programas de educação permanente oferecem aos idosos melhor qualidade de vida, promoção da saúde e desenvolvimento pessoal e coletivo. “Também proporcionam vivências, afetos, formação de vínculos e relações de amizade que, muitas vezes, podem não ser experimentadas com a própria família”, diz.

Na atividade Teatro e Educação: Construindo e Refletindo Cenas de Saúde Mental, Família e Envelhecimento, que Deusivania coordena ao lado do professor de teatro Rogério Pimenta, os idosos discutem e elaboram cenas que tratam de situações de vida de pessoas acometidas por sofrimentos psíquicos graves. São abordadas questões como depressão, ansiedade, mal de Alzheimer e alcoolismo, entre outras. Ao longo do semestre, os idosos interagem com alunos de duas disciplinas do curso de Gerontologia e, no final do período, é elaborada uma peça envolvendo os dois grupos. Faz parte da avaliação das disciplinas participar da peça ou assisti-la e responder a questões sobre os temas tratados. “Adoro essa juventude maravilhosa da EACH”, testemunha Maria de Lourdes.

A leveza do livro

“É difícil um projeto assim conseguir viver 22 anos, ainda mais se voltando para o idoso”, diz Ecléa Bosi, Professora Emérita do Instituto de Psicologia da USP, coordenadora – e criadora – da Unati. “Mas ele tem nos dado imensa alegria pelo tesouro de experiência que são esses alunos.” Esse tesouro é trazido pelos cerca de 120 mil alunos que já passaram pelo programa. Neste ano, foram oferecidas 4.537 vagas em 511 atividades espalhadas por todos os campi da USP.

Foto: PRCEU Os alunos da Universidade Aberta à Terceira Idade em atividade: renovação de vida
Foto: PRCEU
Os alunos da Universidade Aberta à Terceira Idade em atividade: renovação de vida

Além da gratuidade, um dos traços mais originais da Unati, inclusive na comparação com modelos no exterior, é que os idosos participam não só de atividades exclusivas, mas se integram às disciplinas dos cursos de graduação, cumprindo todas as exigências ao lado dos alunos jovens. Ecléa Bosi considera que a Unati só atingiu essa dimensão graças à generosidade dos docentes, e apela para que cada vez mais vagas sejam abertas aos idosos em cursos de todas as unidades.

Procuram a Unati profissionais que desejam se atualizar em sua área ou adquirir conhecimento em novos caminhos. “Já recebi promotores ou professores de Física nuclear que queriam estudar psicologia”, relata Ecléa. A não especialização é o que a professora considera “talvez a característica mais bonita do programa”: um sapateiro vem para estudar botânica; uma passadeira quer fazer chinês; um médico se matricula em música popular. Mas o tipo de aluno que a docente chama de “a glória do projeto” são aqueles idosos que nunca conseguiram estudar. “Tive alunos que não conheceram pai nem mãe, que pediram esmola na rua, que foram presos – e agora estão florescendo na USP”.

A integração dá aos jovens da graduação a oportunidade de conviver – quase sempre pela primeira vez – com pedreiros ou domésticas que não estão lá para servi-los, mas para procurar conhecimento tanto quanto eles. “Ou mais ainda, porque o tempo deles é mais curto do que o do jovem”, aponta Ecléa. É a deixa para que ela conte uma das histórias que mais a marcaram nesses 22 anos. Numa disciplina, assim que o professor passou a lista de leituras para a prova, os estudantes – como sempre – começaram a reclamar. Um aluno da terceira idade, metalúrgico que na época conseguira ocupação apenas para limpar as máquinas sujas de graxa, segurou um livro na mão e perguntou aos jovens: “por que vocês se queixam? O livro é tão leve!”.

“Perder as histórias de vida
é como perder um pedaço da alma”

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Foto: Marcos Santos / USP Imagens
Ecléa Bosi: “As histórias de vida sustentam nossa identidade”

A Universidade Aberta à Terceira Idade nasceu do interesse da professora Ecléa Bosi pelos idosos – seu trabalho desenvolveu-se especialmente sobre as transformações urbanas e a memória na cidade de São Paulo, resultando em livros como Memória e sociedade (Companhia das Letras). Em Velhos amigos, da mesma editora, a professora transformou lembranças reais de velhos operários, imigrantes e outros anônimos em narrativas leves para leitores de todas as idades. “As histórias de vida estão povoadas de coisas perdidas que se daria tudo para encontrar: elas sustentam nossa identidade, perdê-las é perder um pedaço da alma”, escreve num dos textos.

Para a professora, uma cidade sem memória torna-se agressiva ao cidadão e tende à decadência, porque os lugares que marcam a vida das pessoas não são considerados dignos de ser preservados. “Onde mais você pode colher informações preciosas sobre as transformações da cidade senão perguntando para os velhos?”, diz. “Os urbanistas devem sempre consultar os velhos moradores dos bairros antes de sair arrasando-os.”

Enquanto a pirâmide etária brasileira está se modificando e a sociedade parece não se dar conta de que é preciso preparar-se para o envelhecimento, Ecléa Bosi defende que, ao abrir as portas da USP aos idosos, a Unati é de certa forma um retorno justo do que lhes é devido. “Se estivéssemos nos preparando para essa mudança, haveria uma consciência maior de que é preciso devolver aos velhos trabalhadores o que a USP tem nos dado, porque a USP é sustentada por eles”, afirma.

As inscrições para as atividades da Unati no primeiro semestre estão encerradas. Novas turmas serão abertas no segundo semestre. Mais informações no site http://prceu.usp.br/nucleodosdireitos/usp3idade

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