Escritora Nélida Piñon é empossada como titular da Cátedra José Bonifácio

Cerimônia na Biblioteca Mindlin marcou posse na cátedra do Centro Ibero-Americano (Ciba) da USP.

Paulo Hebmüller / Jornal da USP

Em cerimônia que reuniu quatro imortais da Academia Brasileira de Letras na Biblioteca Mindlin, a escritora Nélida Piñon é empossada como titular da Cátedra José Bonifácio

O início do terceiro ano das atividades da Cátedra José Bonifácio, do Centro Ibero-Americano (Ciba) da USP, foi marcado pela despedida do catedrático de 2014, o uruguaio Enrique Iglesias, e pela posse da titular em 2015, a escritora Nélida Piñon, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL). Celso Lafer, Alfredo Bosi e Lygia Fagundes Telles, também membros da ABL, compareceram à cerimônia, realizada no dia 12 passado no Auditório István Jancsó da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na Cidade Universitária, para saudar a nova integrante da comunidade uspiana, como definiram Bosi e o reitor Marco Antonio Zago. Depois da cerimônia, houve sessão de lançamento do livro Os Desafios da América Latina no Século XXI, da Editora da USP (Edusp), coletânea de artigos produzidos pelos pesquisadores de pós-graduação integrados à cátedra. O livro representa um dos frutos concretos do trabalho, como apontou o coordenador da iniciativa, Pedro Dallari, diretor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP.

“Não poderia imaginar uma maneira melhor de passar uma manhã: tivemos uma brilhante aula de economia e política, duas brilhantes aulas de cultura e literatura e música de excelente qualidade. Esse é o ambiente da Universidade”, disse o reitor, referindo-se às manifestações de Iglesias, de Bosi e de Nélida e à apresentação dos Jovens Cantores da USP, do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA). Zago lembrou os três titulares da cátedra – o ex-presidente chileno Ricardo Lagos, em 2013, Iglesias no ano passado e Nélida em 2015 – para dizer que o projeto está fazendo a transição “de um catedrático de ciência política e outro de economia para a área de cultura”, passando de territórios em que a América Latina “se debate em desafios e até conflitos para um que nos une”.

“Sou parte do epicentro ibero-americano e sou uma escritora brasileira que inventa o que está além de mim e que, em meio às intempéries estéticas que salvam a perenidade do verbo, abordo o humano com desfaçatez e ponho a cabeça no cadafalso em troca da versão poética que magnifica a vida”, disse a escritora Nélida Piñon no discurso em que assumiu a cátedra.

Confiança

nelida-pinon-01Alguns dos desafios do continente foram apontados no balanço de Enrique Iglesias, que agradeceu pela oportunidade de atuar na cátedra. O ex-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) citou pontos como o crescimento econômico e a melhoria dos indicadores sociais da América Latina na primeira década deste século, temas abordados também nos artigos do livro que organizou. Setenta milhões de pessoas saíram da pobreza e chegaram à classe média, embora 180 milhões de cidadãos permaneçam na pobreza. Entretanto, “o otimismo foi exagerado”, considera.

Há fatores de ordem internacional, regional e nacional que influem nesse cenário, diz Iglesias. Entre os internacionais estão a recuperação desbalanceada dos países depois da crise econômica de 2008-2009 (“a Europa foi uma decepção”, avalia), o colapso no preço das commodities e a debilidade do sistema de instituições globais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o G-20 e, no caso da América Latina, o Mercosul. Ao mesmo tempo, há sinais positivos, como a diminuição das tensões entre Cuba e os Estados Unidos.

Enrique Iglesias
Enrique Iglesias

Internamente, muitos países enfrentam desafios como os limites de um modelo econômico baseado na exportação de produtos primários e também os limites do assistencialismo social. “A parte mais fácil é sair da pobreza, mas enfrentar a desigualdade é muito mais complicado”, define. É necessário investir em políticas “mais totais”, como criar empregos de qualidade e entrar nas cadeias de valor. “A confiança é fundamental. Sem ela, não conseguiremos fazer nada”, afirma Iglesias. “É uma grande tarefa política.”

Nélida e a “crença na verdade da escrita”

A escritora Lygia Fagundes Telles, formada em Direito pela Faculdade de Direito da USP, representou na cerimônia o presidente da ABL, Geraldo Holanda Cavalcanti. Alfredo Bosi, também acadêmico e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, fez a saudação à “nova colega uspiana”. Bosi lembrou que seu primeiro contato com a obra de Nélida foi na década de 1970, quando escolheu o conto “Colheita”, do livro Sala de Armas, para integrar uma antologia. “Já ali estavam presentes qualidades que seriam marcas indeléveis de sua personalidade de escritora: o gosto pela palavra incisiva, aquela que exprime os movimentos mais sutis da mente e do coração”, considera.

nelida-pinon-04Para Bosi, “Nélida é por excelência uma intelectual do diálogo, da viagem, da proposta, da aventura”. “Tudo o que é opressão e falsidade move e comove a sua veia cidadã. A colheita que presidiu nosso primeiro encontro ainda não findou, porque ainda há muito o que semear e a semeadora não pretende cessar os seus trabalhos de semeadura”, diz. Nascida em 1937 no Rio de Janeiro, Nélida é filha de pai galego e mãe brasileira filha de galegos. Publicou seus primeiros contos em 1959 e é autora de romances como A Casa da Paixão, Vozes do Deserto e A República dos Sonhos, além de livros de contos, ensaios, crônicas e memórias. Em 1990 tornou-se a quarta mulher a ocupar uma cadeira na ABL e, em 1997, a primeira a presidi-la. Já recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, como o Príncipe de Astúrias e o Prêmio Juan Rulfo.

A nova catedrática assinalou que a América Ibero-Americana “nos induz a reconhecer que somos filhos de um universo assombroso, de cuja fermentação espúria emergiram fatos e quimeras com as quais aferir a densidade de nossa psique e de nossa estética”. A escritora ressaltou que nesse território se deu “o encontro das civilizações autóctones americanas, da Península Ibérica, da África, das extensões asiáticas, das beiras do Mediterrâneo, das culturas enfim que, disseminadas pela terra, travaram a batalha entre vida e morte enquanto teciam a policromia luminosa da poesia”.

Nélida Piñon citou também a trajetória do andino Guaman Poma de Ayala e do jesuíta José de Anchieta, contemporâneos de latitudes e culturas diversas. De Anchieta, afirmou que “mal chegado deparou com um Brasil que denunciava um vazio a ser preenchido com a invenção humana” – o que, ao cobrar habilidade descritiva, “exigia ocupação novelesca”. “Graças assim a tantos instigantes escribas, auscultamos as vísceras da história, reinventamos a linguagem dos mortos e os devolvemos à vida e ainda nos asseguramos de que a literatura, ao fornecer as matrizes do continente, é imortal e é nossa inquietante senha de identidade. Eis a minha crença na verdade da escrita”, concluiu.

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