Pesquisadores discutem ganhos e riscos da alteração do DNA humano

Segundo especialistas, a principal questão é que as alterações feitas numa linhagem germinativa são transmitidas à descendência e não se sabe bem ainda quais as consequências.

Paulo Hebmüller / Jornal da USP

Técnica de manipulação genética desenvolvida em universidades norte-americanas – capaz de provocar alterações no DNA humano que podem ser transmitidas hereditariamente – causa polêmica entre pesquisadores, que ainda desconhecem os efeitos dessa modificação

Um grupo de biólogos ligados principalmente a universidades norte-americanas reuniu-se em janeiro em Napa, na Califórnia, para pedir uma moratória mundial na utilização de uma técnica de edição de genoma que alteraria o DNA humano de uma forma que pode ser herdada. A técnica, chamada de CRISPR-Cas9, é qualificada como “poderosíssima” por Oswaldo Keith Okamoto, docente do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da USP. “Você pode modificar o genoma de uma célula, como um embrião, e colocá-la no útero de um animal para gerar outro animal geneticamente modificado com aquela mutação ou com a correção da mutação. Isso já foi feito, por exemplo, num roedor, gerando uma descendência com o gene corrigido”, explica. “Teoricamente foi corrigida uma doença genética e, também teoricamente, isso poderia ser feito em humanos.”

O grande problema, aponta o pesquisador, é que as alterações feitas numa linhagem germinativa são transmitidas à descendência. “Esse é um procedimento de alta responsabilidade. Ainda precisamos entender de fato quais são as consequências dessa manipulação e dessas edições no genoma. Apesar de termos avançado bastante em nosso conhecimento sobre os mecanismos genéticos, ainda conhecemos muito pouco sobre o funcionamento do nosso genoma”, diz.

George Daley, especialista em células-tronco e um dos signatários da proposta de moratória, declarou ao jornal The New York Times que a questão é “como vamos ver a nossa humanidade no futuro e se vamos dar o passo dramático de modificar nossa própria linhagem germinativa e num sentido assumir o controle do nosso destino genético, o que suscita enorme perigo”. O grupo de Napa propõe que sejam “fortemente desestimuladas quaisquer tentativas de modificação da linhagem germinativa para aplicação clínica em humanos enquanto as implicações sociais, ambientais e éticas dessa possibilidade são discutidas entre organizações científicas e governamentais”.

Sem controle

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Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP
Oswaldo Okamoto

A “luz de alerta” sobre a CRISPR-Cas9 foi acesa com o trabalho de Valentino Gantz e Ethan Bier, da Universidade da Califórnia em San Diego, concluído em dezembro de 2014 e publicado em março na revista Science. Utilizando a técnica com uma pequena modificação, os cientistas modificaram um gene, chamado yellow, de um macho de Drosophila melanogaster (uma espécie de inseto) e o cruzaram com uma fêmea selvagem. Mutações nesse gene alteram a coloração das moscas, que se tornam mais claras. Como o alelo era recessivo, as fêmeas geradas deveriam ser selvagens, mas o alelo do macho mudou o alelo da fêmea, e todas as descendentes eram de coloração amarela.

“Acabou-se com qualquer variação que existia nesse ponto, e todas ficaram iguais. Foi isso que gerou o susto: uma vez liberado no ambiente, esse indivíduo poderia fazer com que toda uma população tivesse esse alelo”, diz Tatiana Teixeira Torres, docente do Departamento de Biologia do IB. “A limitação é que não sabemos se o alvo da mudança vai ser uma região só ou se isso vai se inserir numa região não desejada do genoma e produzir um efeito não desejado que se espalhe para a população inteira.” A professora alerta para o fato de que a técnica é “simples, barata e corriqueira para quem esteja acostumado com biologia molecular”.
No melhor dos cenários, demonstradas a segurança e a viabilidade do uso da CRISPR-Cas9 para fins terapêuticos, a edição do genoma pode dar origem a tratamentos para doenças monogênicas (que afetam um só gene) crônicas e degenerativas, como algumas formas de distrofia, para as quais não há alternativas na atualidade. No cenário que causa apreensão nos cientistas preocupados com as questões éticas, o medo maior “é que a técnica funcione tão bem que se possa pensar na possibilidade de mudar outras características da linhagem germinativa não associadas a doenças”, define a professora Tatiana Torres. Ou seja, poderiam ser “programadas” para a própria descendência características que digam respeito a questões físicas, como cor do cabelo ou dos olhos, ou ligadas a desempenho em áreas como esporte, cognição e outras.

Os docentes da USP alertam, entretanto, para o muito que os cientistas ainda não sabem. “Se a técnica funcionar mal, isso poderia afetar outros alvos no genoma, e ainda não conhecemos tanto sobre a interação de genes. Se alteramos um, como fica a interação com os outros na célula inteira?”, pergunta a professora Tatiana. Para Oswaldo Okamoto, a edição pensada para um gene pode ocorrer em outras regiões do genoma que o pesquisador não enxerga, o que “pode gerar consequências sobre as quais não temos controle”.

Transparência

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Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP
Tatiana Teixeira Torres

A moratória proposta pelo grupo de Napa evoca antecedentes históricos, como o da pesquisa sobre DNA recombinante, em 1975. A tecnologia era revolucionária para a época, mas não se sabia se as proteínas recombinantes eram plenamente ativas ou poderiam causar algum tipo de efeito colateral. Como frutos dessa tecnologia, existem hoje vários hormônios produzidos em larga escala para uso terapêutico. “Essa foi uma experiência muito positiva que está sendo trazida à luz agora”, lembra Okamoto. “A edição do genoma é um avanço muito importante, potencialmente disruptivo, que precisa ser muito bem ponderado e discutido para permitir sua evolução com segurança.” No caso do DNA recombinante, aponta o grupo de Napa, “a lição mais importante foi que a confiança do público na ciência requer, e começa com, transparência e discussão aberta”.

Para Oswaldo Okamoto, vivemos um período fascinante em meio à revolução da biologia celular. “Estamos avançando muito e temos agora o instrumental para compreender muito mais sobre o genoma e sobre como conseguiríamos ter a chance de corrigir mutações genéticas para evitar uma doença. A ciência e a tecnologia amadurecem, e a legislação precisa amadurecer também. Essa discussão precisa vir à tona”, diz. “É importante discutirmos isso também na USP, porque temos muitos laboratórios que utilizam a técnica para pesquisa. Temos que debater qual a repercussão dela para que isso reverta em benefícios para a sociedade.”

Discussão aberta entre cientistas e sociedade

(Fonte: Science Express)

A reunião dos cientistas em Napa fez algumas recomendações à comunidade científica e à sociedade para o debate em torno da utilização da técnica CRISPR-Cas9. O resumo delas é o seguinte:

  • Desestimular fortemente, mesmo nos países em que a legislação as permita, quaisquer tentativas de modificação da linhagem germinativa para aplicação clínica em humanos enquanto as implicações sociais, ambientais e éticas dessa possibilidade são discutidas entre organizações científicas e governamentais.
  • Criar fóruns nos quais especialistas da comunidade científica e de bioética ofereçam informação sobre os riscos e potenciais benefícios dessa poderosa tecnologia.
  • Encorajar e apoiar pesquisas transparentes para avaliar a eficácia e a especificidade da CRISPR-Cas9 em modelos humanos e não humanos.
  • Convocar um grupo globalmente representativo de desenvolvedores de tecnologias de engenharia genética e especialistas em genética, direito e bioética, bem como membros da comunidade científica, da sociedade, de agências governamentais e de grupos de interesse para discutir a questão e, se necessário, recomendar políticas.
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