Ingressei na Faculdade de Direito da USP em 1983, aos 17 anos de idade, tendo sido a primeira pessoa de minha família a estudar em uma universidade pública.
Residindo em Mogi das Cruzes, última cidade da Grande São Paulo antes do Vale do Paraíba, e filha mais velha de pai militar e mãe superprotetora, a permissão para eu estudar na São Francisco foi condicionada à minha disposição de viajar diariamente para São Paulo, onde, por ser mulher, eu não estava autorizada a morar.
Quase desisti de frequentar o curso já ao final do primeiro semestre: além do cansaço físico decorrente de acordar muito cedo e diariamente passar horas e horas em trânsito, em diferentes modais de transporte público, sentia uma espécie de não pertencimento ao ambiente da faculdade, seja por ser mulher e neta de pessoas analfabetas, seja por ter passado os anos de ditadura morando em uma vila militar e ter conhecimento de que meu pai ainda trabalhava a seu favor, no setor de inteligência do Exército, inclusive tendo como uma de suas funções acompanhar aulas na Faculdade de Filosofia da USP.
Ocasionalmente, durante nossas aulas na São Francisco, constatávamos a presença de um homem que se mantinha isolado no fundo da sala, com roupas e óculos escuros, o qual, jocosamente, era tratado pelos estudantes como “araponga”. Constrangida, eu me mantinha calada acerca das atividades profissionais de meu pai, que se tornaram um segredo que eu tinha vergonha – e medo – de revelar.
Também não revelei a meus pais, em 1984, que, em companhia de colegas da Sanfran, fui para o comício das Diretas Já, no Anhangabaú: escondi minha camiseta amarela dentro da bolsa e me troquei na faculdade. Acredito que tenha sido uma das primeiras das inúmeras solenidades em defesa do regime democrático de que participei, tendo sido a mais recente a que ocorreu no salão nobre da Sanfran, logo após a tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023.
Foi na Sanfran que aprendi a importância e o valor da democracia, dos direitos humanos e fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Foi a Sanfran que me incentivou – e me ofereceu os meios necessário – para transformar meu senso de justiça em ação e a lutar contra a desigualdade de gênero, inclusive durante o concurso de ingresso no Ministério Público do Estado de São Paulo, em 1988, e toda a subsequente carreira como Promotora de Justiça (cargo no qual tomei posse, coincidentemente, dias após entrar em vigência a “Constituição Cidadã”).
Em 2015, quando meu filho caçula, Rodrigo, se tornou aluno da Sanfran, pude orgulhosamente constatar, por meio dele, que, através da organização de coletivos e das discussões sobre as políticas de cotas, também as desigualdades de classe e raça passaram a ser objeto de enfrentamento na faculdade.
Tendo me aposentado no ano de 2023, como Procuradora de Justiça, depois de 34 anos como integrante do MPSP, hoje moro em São Paulo – cidade que adoro – e, como associada à ONG Mães pela Diversidade (que acolhe famílias de pessoas LGBTQIA+ e atua na promoção e defesa de seus direitos e no combate à LGBTQIA+fobia), sou ativista de direitos humanos, na área da diversidade sexual e de gênero, na qual me especializei.
Em nome dessa associação, acabei de redigir proposta, a ser encaminhada à Comissão da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação (integrada por professores/as da Sanfran, inclusive uma colega de turma), de revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito, para inclusão da disciplina de Direitos Humanos como obrigatória, com previsão explícita de conteúdos relacionados à diversidade sexual e de gênero e suas intersecções com outros marcadores sociais da diferença, como raça e classe.
Tento retribuir tudo o que recebi na Sanfran contribuindo para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, inclusiva, diversa e equânime para todas as pessoas.
Parabenizo a USP pelos seus 90 anos e, através deste testemunho, manifesto toda minha enorme gratidão por tudo que me proporcionou!