Venho de uma família extremamente tóxica, por conta disso, tudo que conquistei foi esforço próprio. E, para surpresa de muitos, passei na Medicina USP turma de 1988. Tive um ano conturbado, sem nenhum apoio da família, e consegui completar meu primeiro ano (naquele tempo, algumas aulas na Dr. Arnaldo e outras no ICB. Várias vezes fui a pé de um lugar ao outro. Quando comecei o segundo ano, nas atividades de recepção aos calouros, eu a conheci Aline, baixinha (1,47m) , mas zangada na proporção da não altura…
Começamos a conversar e, por incrível que possa parecer, logo começamos a namorar. A piada da turma é que ela era a “primeira desencalhada da turma 77” . Namoramos durante toda a faculdade, tirando um período de 6 meses que ela me deu uma geladeira porque estava muito folgado, e noivamos no final do 4º ano. Noivamos dentro do Hospital 9 de Julho porque nossa melhor amiga e nosso cupido estava gravemente doente e internada.
Fizemos o 5ºe 6º ano sempre como excelentes parceiros. No final do R1, nos casamos em uma cerimônia que não foi mais simples porque minha sogra queria uma festa de arromba e bancou tudo (obrigado, tia!!!!). Terminamos a residência e caímos na vida. Ela, como era muito inquieta, acabou na indústria farmacêutica, o que nos proporcionou um certo conforto e muito bons contatos.
Caímos na vida e trabalhamos muito, viajamos o mundo e fizemos tudo o que queríamos. Aos 40 anos de idade, começou a nos bater um vazio, falta algo. Entramos na fila de adoção e tivemos Beatriz, de longe nosso maior tesouro. Vivíamos uma vida feliz, Bia na escola, nós trabalhando e com um conforto na vida, quando um dia a Aline amanheceu amarela como um canário e com muito mal estar.
A levamos para o Hospital São Camilo, ela foi atendida por colegas da casa que diagnosticaram uma hepatite fulminante. Ela foi transferida para a UTI de transplante do nono andar do HC. Vivi três semanas das piores emoções da minha vida.
A segunda pessoa que eu mais amava estava morrendo, precisando urgente de um fígado novo, e eu orando para alguém morrer. Gente, não me julguem, só quem passou por isso conseguiria me entender. Fui acolhido por todos no HC, equipe médica, enfermagem, capelania. E vivendo uma turbilhão de sentimentos.
Graças a meu vínculo com a faculdade, consegui “contrabandear” minha filha (na época, com 5 anos) na UTI e ela pode se despedir da mãe. As últimas palavras que ela disse para mim: “você não se atreva a criar nossa filha sozinho!”; quatro dias depois, Aline foi para os braços de de Deus em outro plano.
De novo a minha casa me acolheu, como um filho que está passando por um imenso sofrimento. Colegas de turma, colegas de outras turmas, pessoas que sequer eu conhecia, vinham, me abraçavam e diziam: “meu amigo, tamo junto”. Só quem passou por essa dor consegue entender o poder do reconforto dessas palavras. Eu tive a dura missão de trazer minha filha (4, quase 5 anos) para se despedir da mãe. Não desejo essa experiência para ninguém.
Hoje, vivemos um momento de reconstrução. Minha filha sofreu pela perda da mãe. Felizmente, temos uma pessoa que, claro, não a substitua, faz tudo para minha filha ser feliz.
Eu tenho uma dívida impagável com o HCFMUSP. Fui acolhido, recebi suporte e consegui sobreviver a esse baita caos. Sou filho da USP e me orgulho muito disso.