Proximidade com o real aproximou jornalismo da produção teatral

Nos anos 1950 e 1960, dramaturgos criavam peças baseadas em reportagens, denunciando problemas sociais.

Ana Paula Souza / Agência USP de Notícias

Dizem que o jornalismo e o teatro são duas narrativas aparentemente inconciliáveis: o primeiro está ligado à realidade, enquanto o segundo é visto como uma ficção. No entanto, segundo o jornalista José Ismar Petrola Jorge Filho, autor da pesquisa Jornalistas e dramaturgos: influência da prática jornalística na dramaturgia no Brasil em meados do século XX, a partir dos prontuários de censura do Arquivo Miroel Silveira, há uma ligação entre o jornalismo e a vertente teatral voltada para a abordagem de questões da sociedade, relação que pode ser notada a partir da análise do trabalho de jornalistas que também desempenharam a função de dramaturgos.

Jorge Filho elaborou seu estudo enquanto integrante do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, onde desenvolveu a pesquisa sob orientação da professora Maria Cristina Castilho Costa, que é coordenadora da Obcom.

Um dos pontos de análise do pesquisador foi observar como o jornalismo influenciou a produção teatral de dramaturgos que também trabalharam como jornalistas, verificando como a censura lidava com essa relação. Essa análise foi feita a partir do estudo das obras O poço, de Helena Silveira (1950); O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues (1961); Vereda da salvação, de Jorge Andrade (1964); Barrela, de Plínio Marcos (1959) e Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel (1965). Entre os resultados, está o fato de que alguns desses jornalistas-dramaturgos escreveram peças inspiradas em acontecimentos relatados pela imprensa.

“Trabalhando com os documentos de censura, percebi que, além de terem exercido as duas profissões, vários dos dramaturgos que também foram jornalistas tinham algo de ‘jornalístico’ em seus trabalhos”, conta Jorge Filho. “É o caso da peça O poço, de Helena Silveira, claramente inspirada em um caso real: em 1948, um jovem professor matou a mãe e as irmãs e enterrou os cadáveres em um poço”. O pesquisador conta que o caso serviu de base para vários textos publicados no jornal onde Helena trabalhava, a Folha da Manhã. Segundo Jorge Filho, a peça foi proibida pela censura pouco antes da estreia, em 1950, com o pretexto de que a arte não deveria falar de um acontecimento real, “ainda vivo na memória da opinião pública”, e que a peça era uma apologia ao episódio. “Tempos depois, a peça foi liberada, com numerosos cortes, mas Helena foi processada por parentes das vítimas do crime”.

Tudo junto e misturado

Como conta Jorge Filho, há uma oposição entre duas concepções de arte: de um lado, há os que defendem uma arte idealista, de cunho mais conservador; de outro, os que defendem uma arte realista, que denuncia os problemas da sociedade. Para o pesquisador, é nesse ponto que teatro e jornalismo se ligam mais estreitamente. Segundo ele, as restrições a “O poço”, de Helena Silveira, e a outras peças de jornalistas mostra que a censura tinha uma visão idealista da arte, num exemplo de como a estética não se separa da política. “A estética diz como deve ser cada forma de expressão — por exemplo, se o teatro deve ser um exemplo de moral e civismo, ou um veículo de denúncia de problemas sociais. Isto também se aplica ao jornalismo — se é mais informativo, procurando parecer “neutro”, ou mais opinativo, deixando clara sua opinião, ou ainda literário”.

Segundo o pesquisador, mesmo na atualidade, a abordagem de fatos que mexem com a sociedade ainda geram polêmicas nos palcos. “As restrições à liberdade de expressão são mais dispersas. Não é mais a censura prévia estatal, mas outras formas de pressão, como processos judiciais ou pressões econômicas. Assim como o crime do poço, o caso Isabella Nardoni também inspirou uma peça teatral, do grupo Os Satyros”, relata Jorge Filho. “A mãe da menina Isabella entrou na Justiça para impedir a estreia dessa peça, e conseguiu. A decisão judicial justificou a proibição alegando que a peça fazia ‘remissão direta ao homicídio de Isabella’. Isto em 2013. Então, como se vê, essa questão de estética e política, idealismo e realismo, continua importante na atualidade”.

A pesquisa feita pelo jornalista foi produzida ao longo de três anos e envolveu a leitura de documentos do Arquivo Miroel Silveira, que reúne cerca de 6 mil processos de censura prévia ao teatro do Estado de São Paulo, do período de 1930 a 1970. Também houve consulta a acervos de jornais, como o banco de dados da Folha de S.Paulo, o Arquivo Público do Estado de São Paulo e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Mais informações: email joseismarpetrola@gmail.com

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