Físico premiado, Nussenzveig atualiza reflexões de Niels Bohr sobre a luz e a vida

Professor emérito do Instituto de Física da UFRJ retorna à USP para comentar as teses de Bohr, atualizando-as frente aos avanços do conhecimento.

Uma vida sempre surge de outra vida, postula a ciência. Ao menos desde o passado recente da Terra, em que desde os organismos mais simples até os mais complexos são produto da reprodução e têm a capacidade de se reproduzir. Mas talvez em uma única ocasião – singularidade biológica? – o que vive deve ter se originado do que não vive. Pesquisadores têm se debruçado sobre este hipotético evento.

Centro: José Goldemberg. À sua direita: Carlos Guilherme Mota, Alfredo Bosi e Gerhard Malnic. À sua esquerda: Paul Singer, Herch Moyses Nussenzveig e Edgar Luis de Barros.  Foto: IEA / USP
Nussenzveig em reunião do Instituto de Estudos Avançados da USP 
Foto: IEA / USP

Niels Bohr teorizou sobre o tema no célebre ensaio “Luz e vida”, proferido em palestra em 1932. O dinamarquês, todos sabem, não era biólogo, e sim físico – e foi outro físico fascinado pela questão quem veio à USP relembrar a palestra de Bohr, que também abordou o problema da consciência. Moysés Nussenzveig, atualmente professor emérito do Instituto de Física da UFRJ, é o bom filho que retornou à USP para comentar as teses de Bohr, atualizando-as frente aos avanços do conhecimento realizados desde então.

Parte do que na época eram apenas especulações pode ser confirmado ou refutado. Mas outros pontos ainda integram o território do mistério, instigando mentes admiráveis como a do professor Nussenzveig, palestrante do ciclo “Convite à Física” do dia 5 de agosto, no Instituto de Física (IF) da USP.

Origem energética e origem química

Um dos viéses mais importantes a serem investigados em busca da origem da vida é o energético. “Se alguém quiser entender a política, já disseram, que ‘siga o dinheiro’. Para quem quer entender a vida podemos então dizer: ‘siga a energia’ ”, sugeriu o professor Nussenzveig.

A hipótese mais recente, segundo ele, é de que a vida surgiu em chaminés hidrotérmicas nas profundezas do oceano. Tais chaminés, conforme se acredita, foram formadas por vulcanismo e pela tectônica de placas, liberando um fluido aquecido proveniente do centro da Terra. Suas paredes apresentam uma microestrutura porosa forrada de elementos como ferro e enxofre – e estes fazem o papel de catalisadores, originando um sistema semelhante a um reator químico de fluxo. A reação com hidrogênio e gás carbônico do interior dos poros teria produzido as moléculas precursoras do RNA, nucleotídeo que atua na síntese de proteínas da célula.

A origem química da vida pode estar ligada ao ácido cianídrico depositado por cometas, e à ação da radiação ultravioleta, como mostrou um estudo recente. Experimentalmente, foi verificado que tal combinação propiciava a formação dos precursores dos tijolos necessários à construção da vida: os ácidos nucleicos, aminoácidos e lipídios.

Os fósseis mais antigos de seres procariontes – cianobactérias e Archaea – indicam que há 3,8 bilhões de anos essa forma de vida já existia, e pode ter havido um ancestral comum entre eles com duas características universais – o código genético e a capacidade de gerar energia por quimiosmose.

Venenivibrio stagnispumantis, exemplo de ser vivo que realiza quimiossíntese
Foto: Adrian Hetzer / Wikimedia Commons

Após dois bilhões de anos de domínio dos procariontes sobre a vida na Terra, surgem os eucariontes, células com um núcleo separando o material genético. “Este foi o evento mais importante na evolução da vida, um encontro entre bactéria e Archaea em que a bactéria engoliu a Archaea e elas estabeleceram entre si uma relação de endossimbiose, uma dentro da outra”, explica o professor. É provável que isso tenha dado origem às mitocôndrias, as usinas de energia das células eucarióticas. Isso porque estas organelas mantêm características muito semelhantes às Archaea. A partir daí, com uma usina dentro da própria célula gerando energia, era possível multiplicar a complexidade da vida.

Com uma usina dentro da própria célula gerando energia, era possível multiplicar a complexidade da vida.

Também por endossimbiose as cianobactérias, capazes de gerar energia a partir da luz solar, originaram os cloroplastos nos vegetais, estruturas essenciais à fotossíntese. As cianobactérias foram as responsáveis por criar uma atmosfera oxigenada, e assim pode surgir a respiração celular – que utiliza oxigênio e nutrientes para produzir ATP, o combustível da vida. Deste modo, pode-se afirmar que a luz do Sol guarda uma relação fundamental com a vida, no passado e no presente – e o efeito estufa, que mantém parte da radiação na Terra, aquecendo-a, também tem importante papel nisso.

Mecânica quântica, luz e biologia

 

Moysés Nussenzveig fala ao auditório lotado no Instituto de Física da USP

A estrutura da matéria é explicada pela área da física conhecida como mecânica quântica. Em sua palestra, porém, Niehls Bohr propôs a seguinte questão: seria a mecânica quântica relevante para a biologia? Ou seja, será que as interações biológicas também precisam de efeitos quânticos, como acontece no caso das ligações covalentes (ligações químicas em que há compartilhamento de pares de elétrons entre átomos, mantendo assim a molécula unida)? “A resposta é não. Tipicamente, as interações biológicas são muito mais fracas”, esclarece o professor, indicando que a vida exige flexibilidade, isto é, a bioquímica não pode prescindir de reações que demandem muita energia para quebrar ligações fortes para formar, por exemplo, as proteínas.

E a coerência quântica, desempenha algum papel? “Isto é muito improvável sob a perspectiva evolucionista, pois sabemos que a coerência quântica é extremamente frágil, sendo destruída rapidamente pelo ambiente – o que inclusive é o principal problema enfrentado por quem pretende construir um computador quântico”, afirmou o físico, destacando que nenhum dos fenômenos biológicos candidatos a efeitos de coerência quântica é convincente ou experimentalmente comprovado.

Em relação à mente, o professor citou o paralelo feito por Bohr sobre os instrumentos de medida e os objetos que eles buscam mensurar de um lado, e o conteúdo da mente e a tentativa de apreendê-lo de outro, já que este conteúdo também se altera quando nele tentamos nos concentrar.

Qualquer analogia que se pretenda fazer de um sistema complexo como o cérebro com um computador é absolutamente falsa.

O cérebro humano é o sistema mais complexo que temos no Universo, com seus 100 bilhões de neurônios, cada um ligado a uma média de cem mil outros neurônios e a mais outro tanto de células não neuronais, em sinapses modificadas pelo ambiente a todo momento. “É um número maior de interconexões do que o número de estrelas na Via Láctea”, comparou Nussenzveig, declarando que qualquer analogia que se pretenda fazer de um sistema complexo como o cérebro com um computador é absolutamente falsa.

Consciência

Rotador celular ópticoFoto: Wikimedia Commons
Rotador celular óptico
Foto: Wikimedia Commons

Para Bohr, o reconhecimento das limitações dos conceitos mecânicos da física atômica permite conciliar os pontos de vista aparentemente contrastantes da psicologia e da fisiologia. Já Francis Crick publicou um livro intitulado “A hipótese espantosa” sobre a possibilidade de que nós, nossas alegrias e tristezas, memórias e ambições, nosso sentido de identidade pessoal e livre arbítrio não passam do comportamento de um vasto conjunto de neurônios e moléculas associadas. “Como diria Alice de Lewis Carrol, você não passa de um pacote de neurônios”, resumiu Nussenzveig.

De fato, há muitas ilusões provocadas pelo cérebro, como demonstrou, por exemplo, o neurocientista Vilayanur Ramachandran ao conseguir reduzir a chamada dor do membro fantasma utilizando uma caixa de espelhos que oferecia ao paciente feedback visual do membro amputado, ou experimentos utilizando simulação sensorial que dão a ilusão de que alguém possui o corpo de uma outra pessoa. “Isto produz um efeito tão forte que a pessoa pode tentar cumprimentar apertando sua própria mão”, relata o professor.

Como disse Schopenhauer, o homem pode fazer o que ele quer, mas não pode querer o que quer.

Em seu ensaio, Bohr definiu o livre-arbítrio como uma característica da vida consciente que não permite uma discussão causal mecânica ou física – no que, segundo o professor, ele estava errado. Já em 1983 foi descoberto que a atividade cerebral relacionada ao que a pessoa pensa ser um movimento voluntário acontece bem antes de que ela possa ter consciência disso. Tipicamente, isso acontece com algumas centenas de milissegundos de antecedência – mas o intervalo pode chegar a até um segundo. Um experimento recente de interação homem-máquina permitiu a uma pessoa quadriplégica levantar um copo de cerveja antes de tomar consciência do que estava fazendo. “Como disse o filósofo Schopenhauer, o homem pode fazer o que ele quer, mas não pode querer o que ele quer”, concluiu.

Pinças ópticas

Foto: Divulgação / Laboratório de Pinças Óticas - UFRJ
Foto: Divulgação / Laboratório de Pinças Óticas – UFRJ

Em 1932, o físico dinamarquês teorizou que se se tentasse manipular órgãos de um animal a tal ponto de permitir observar o papel de átomos individuais nas funções vitais, o animal consequentemente seria morto. Nussenzveig explicou que dispositivos denominado pinças ópticas contrariaram esta previsão, inaugurando a era da biologia molecular. “Bohr tinha o costume de dizer que não se deve fazer previsões para o futuro, e isso se aplica a ele mesmo como  uma luva”, brincou o professor, mencionando que atualmente existe até uma revista que se chama Biologia de Moléculas Únicas.

As proteínas motoras são máquinas moleculares maravilhosas que desempenham um papel central na vida.

As pinças utilizam um feixe de laser para atrair e capturar células, tendo como grande vantagem evitar danos, sendo possível a manipulação in vivo de células medindo com precisão grandezas como força e distância de deslocamentos. Embora tenham sido inventadas há 50 anos, a tecnologia dependia de uma calibração absoluta que só foi obtida em 2014 no laboratório que o professor coordena na UFRJ. “O que se mostra com as pinças ópticas é que um tipo de proteínas chamadas proteínas motoras são máquinas moleculares maravilhosas que desempenham um papel central na vida, permitindo converter energia química diretamente em energia mecânica, e possibilitando todo tipo de atividade nas células.

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