Estudo da FFLCH revela como busca de reconhecimento marcou o início da música popular

Pesquisa discute o reconhecimento artístico e comercial e a vaidade dos músicos no começo do século 20

Bruno Capelas, especial para a Agência USP de Notícias

Em trabalho realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a socióloga Lilian Alves Sampaio procurou refletir sobre a música praticada fora dos ambientes eruditos, uma prática cultural hoje amada e socialmente valorizada, mas que no inicio do século 20 era menosprezada. Em sua tese de doutorado, intitulada Vaidade e Ressentimentos dos músicos populares e o universo musical do Rio de Janeiro no início do século XX, Lilian pesquisou sobre o momento no qual começam a surgir os primeiros compositores e músicos profissionais da música de divertimento nacional, fora dos teatros.

Foram escolhidas as trajetórias biográficas de seis músicos do período como base para a análise feita na tese. Segundo a pesquisadora, o critério para a escolha dos artistas “não foram seus feitos, mas sim o fato de terem chamado a atenção dos homens de letras da época”. São eles Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Eduardo das Neves, Catullo da Paixão Cearense, Sinhô e Pixinguinha, todos músicos compositores que alcançaram um grande sucesso comercial e tiveram seus nomes imortalizados por alguns escritores. “É essa relação entre a percepção dos escritores, agentes da cultura legítima, e das condições de existência dos músicos vindos das camadas mais destituídas de capital cultural e econômico, um dos eixos da análise”, justifica a socióloga.

Reconhecimento

Um dos temas principais tratado neste estudo, foi a questão do reconhecimento comercial e artístico oferecido pela sociedade da época aos músicos não eruditos. A autora explica que “hoje, o reconhecimento comercial figura em um pólo diferente do reconhecimento artístico e estrutura o espaço de produção da música popular nacional, mas naquele momento histórico não havia esta separação na percepção das pessoas.” O que hoje chamamos música popular e que pode ser distinta em “música de boa qualidade” e “música de má qualidade”, era apenas música de divertimento e se opunha à música de concerto, ou música erudita européia. É apenas na década de 1920 que surgem as primeiras distinções entre uma música popular comercial feita para atingir um publico extenso, ou a ”massa”, e uma música popular artística apreciada por um público mais restrito com dispositivos de apreciação mais racionalizados.

Esse processo de legitimação, que irá definir o que hoje consideramos os clássicos da música popular brasileira, foi iniciado por alguns intelectuais, escritores, políticos, músicos concertistas, imbuídos de um ideal de construção de uma identidade nacional, já nos primeiros anos do século. A música de divertimento, já bastante desenvolvida nesse momento, irá chamar a atenção dos homens de letras e músicos concertistas, como Mello Morais Filho, Brasilio Itiberê, Andrade Murici, Alberto Nepomuceno, Sérgio Milliet entre outros. Mas foi Mário de Andrade o primeiro a formular claramente a distinção entre uma música popular artística e uma música puramente comercial.

Em meio a esse processo de legitimação a atividade dos músicos populares assumiu um caráter ambíguo, pois ocupava uma posição inferior em relação à música erudita européia, mas ao mesmo tempo era largamente difundida pela sociedade e reconhecida como uma importante expressão cultural por alguns agentes da cultura legítima. Além disso, vale destacar que “a identidade de músico oferecia uma compensação a outros signos sociais bem mais negativos, como ser ‘negro’, ser ‘pobre’, ‘não ter escolaridade’ ou ser ‘uma mulher separada do marido’”, diz Lilian.

Vaidade

É essa ambigüidade da condição do músico popular que oferece uma base para compreender a vaidade e ressentimento dos músicos testemunhada pelos escritores da época. A pesquisadora cita como exemplo o caso de Catullo da Paixão Cearense, autor de “Luar do Sertão”: “Há testemunhos que contam como ele se irritava e se recusava a continuar quando não o ouviam declamar sua poesia em silêncio”. Outro episódio citado pela pesquisadora, foi a vez que Sinhô entrou na Casa Edson para reclamar o pagamento de seus direitos autorais e num gesto altivo, com os braços abertos apontando as paredes da loja, disse: “tudo isso é meu”. “Ernesto Nazareth era descrito como fechado em uma “torre de marfim” por algumas pessoas que o conheceram e Chiquinha Gonzaga reclama amargamente, nas raras cartas encontradas por sua biógrafa, Edinha Diniz, sobre a “injustiça” que sofreu ao ter suas composições “boas e lindas” preteridas por “tudo que há de indecente, porco e nojento” dos novos compositores”.

A pesquisadora dá sua própria interpretação dos fatos: “a sociedade ofereceu elementos que constitui a base dos anseios sociais e da crença desses músicos em seu alto valor, mas não ofereceu as recompensas sociais e materiais que eles esperavam”. Os músicos recebiam dois tipos de informações diferentes nas suas interações cotidianas, uma sobre sua importância social e sobre o afeto que despertavam em toda a população, outra sobre sua inferioridade social e cultural, o que dava ensejo a uma percepção discrepante de si mesmos.

Mais informações: email lsampaio@usp.br, com Lilian Alves Sampaio 

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