Negação do outro constitui o sujeito literário brasileiro, afirma estudo da FFLCH

Estudo sobre literatura brasileira permite entender traços da formação do caráter em autores do século 20.

Rúvila Magalhães / Agência USP de Notícias

Na literatura brasileira do século 20, não há um molde recorrente quando se pensa na construção do sujeito. De acordo com pesquisa realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, esse sujeito autônomo, muitas vezes representando o burguês, assume diferentes formas na obra dos autores estudados: José Lins do Rego, Lúcio Cardoso, Nelson Rodrigues e Raduan Nassar. Diante do tema “escravidão”, todos apresentam certo trauma do período. Essas foram algumas percepções retiradas do estudo Tragédia familiar: a formação do indivíduo burguês em obras literárias brasileiras do século XX, realizado pela doutora em literatura comparada e teoria literária, Bianca Ribeiro Manfrini. Os temas família e escravidão foram o foco da análise feita pela pesquisadora.

Inspirada por professores de sua graduação, que sempre enfatizavam o tema da escravidão e suas implicações formais no terreno da literatura brasileira, Bianca teve o interesse em investigar como isso acontecia em autores que a interessavam e que possuíam em comum o gosto por temas como a família e a escravidão. A pesquisa foi iniciada em 2010, tendo como orientador o professor Joaquim Alves de Aguiar.

Construção do sujeito

“O objetivo central foi demonstrar, por meio da análise e interpretação literária do conjunto da obra dos autores, que a noção de ‘indivíduo’ ocorre de forma diversa na formação do personagem de romance brasileiro desses autores, pois advém da noção de que o sujeito no Brasil se forma de maneira ‘negativa’, ou seja, o sujeito, entre nós, se forma ao negar a existência do outro”, descreve Bianca. Além disso, ela visou mostrar que essa ideia teve ampla repercussão na literatura e atua como elemento estruturador do personagem, inclusive no século 20, que foi uma época de histórica modernização na sociedade brasileira.

A partir da análise feita, foi detectado em todas as obras estudadas certo trauma do período da escravidão brasileira. Também foi possível concluir que não há em nossa literatura aquela figura clássica do burguês autônomo, amplamente encontrada em romances europeus. “No romantismo europeu — momento de modernização daquela sociedade — o personagem se molda em embate com o mundo ao redor, constituindo uma autonomia complexa, que guarda recessos e recônditos muito visíveis no processo de investigação do inconsciente presente em autores como Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf”, explica Bianca.

Com base nesse panorama, a pesquisa apontou que a noção do sujeito autônomo tem uma constituição bastante diversa. Na obra de José Lins do Rego o sujeito forma-se passando pelo autoritarismo e pela insegurança patológica, em Lúcio Cardoso esse sujeito é constituído por incestos e pela indistinção que cerca os personagens. Em Nelson Rodrigues, a marca é a obsessão sexual e, por fim, o sujeito de Raduan Nassar é envolvido pela circularidade mítica.

Nas obras de todos esses autores, o sexo tem um papel tanto decisivo quanto deformado. Nesses autores, o sexo demonstra posse e violência, sendo que a relação entre brancos e negros existente na colônia acaba sendo transferida para outros conflitos psicológicos, presentes dentro da família nuclear que habita as cidades. “Simplificando um pouco as coisas, podemos dizer que a casa-grande fica menor no ambiente urbano, mas permanecem, embora modificados, seus males de origem”, analisa Bianca.

Mudanças nos paradigmas familiares

Foi possível encontrar algumas semelhanças entre os autores, principalmente no campo temático. Eles conectam temas familiares a temas relacionados ao incesto, loucura, morte, tragédia, conflito e a indistinção entre as pessoas. Os temas domésticos possuíam grande relevância aos autores principalmente pelo papel principal dado às famílias na formação da sociedade brasileira. “O que ordenava as relações eram os laços familiares e de favor, de maneira que no século 20 esse esquema ‘implode’ na forma do incesto, como se a formação social familiar entrasse em colapso e se auto-consumisse doentiamente”, explica a pesquisadora.

Bianca foi surpreendida ao constatar que algumas coisas consideradas como “naturais” da cultura brasileira na verdade têm fortes raízes históricas do passado colonial. Um exemplo é a necessidade de pertencer, de alguma maneira, a alguma comunidade, que pode ser uma família grande, uma escola de samba, uma corporação criminosa, etc. A tese encontra-se arquivada na biblioteca da FFLCH para eventuais consultas. O estudo constitui uma referência bibliográfica sobre esse assunto.

Mais informações: email biancaribeiro@usp.br, com Bianca Ribeiro Manfrini

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