“Orfeu de carapinha”: colóquio na Brasiliana retoma vida e obra do escritor Luiz Gama

"'Se de um quadrado fizer um ovo...': ousadia literária e política em Luiz Gama" foi o tema da quinta edição do Colóquio Mindlin.

Silvana Salles / Jornal da USP

Em colóquio na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, pesquisadora fala sobre os esforços para reabilitar Luiz Gama como um pioneiro da literatura

Ao longo de sua carreira acadêmica, a professora Ligia Fonseca Ferreira tem dedicado esforços para reabilitar a obra literária do escritor Luiz Gama. Nascido em 1830 na Bahia, Gama era filho de uma mulher negra livre com um fidalgo português – que o vendeu como escravo quando tinha 10 anos para pagar uma dívida de jogo. Viveu os oito anos seguintes na escravidão. Apesar de analfabeto até os 17, era autodidata e aprendeu a ler e escrever em um curto espaço de tempo. A partir daí, já em São Paulo, passou a frequentar as aulas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, advogou, foi jornalista de grande audiência, militou pela causa abolicionista e escreveu poesia.

Não só isso: o poeta esteve envolvido com algumas das primeiras iniciativas de difusão cultural em São Paulo, num tempo em que os jovens que vinham à cidade estudar Direito se deparavam com a perspectiva de ter pouco ou nada para fazer para se divertir e o grande centro de cultura do País era o Rio de Janeiro. Em 1870, ele participou da criação da primeira biblioteca popular de São Paulo. Para se ter uma ideia de como era a cidade na época, o censo demográfico de 1872 identificou 30 mil habitantes no município. No mesmo ano, começou a funcionar a primeira linha de bondes puxados por tração animal, que ligava o Largo do Carmo à Estação da Luz.

Foto: Reprodução / Biblioteca Nacional
Foto: Reprodução / Biblioteca Nacional

No entanto, a crítica literária frequentemente lembra de Luiz Gama como um homem negro que, por obra do acaso, também fazia versos. Nos manuais, o nome de Gama ocupa, injustamente, os rodapés dos capítulos sobre o romantismo brasileiro. Desde os finais do século 19, quando intelectuais brasileiros começaram a compilar cronologias da produção literária brasileira, há uma tendência de encobrimento que é tributária das teorias racialistas às quais a elite se filiou.

“Ele teve mais sucesso de recepção e crítica enquanto era ainda vivo do que a partir das primeiras histórias importantes da literatura brasileira, como o trabalho do Silvio Romero. Os críticos ficaram obnubilados, querendo enxergar no Luiz Gama um negro que escreve, e não um poeta que, entre outras coisas, é de origem negra. Esquecem toda sua vinculação com uma história editorial, com uma história de ideias, com uma tradição literária que ele resgata até de Portugal, e a importância desses poemas não só para a literatura, mas para a própria história política. É como se ninguém conseguisse enxergar outra coisa que não a pele do Luiz Gama”, afirma Ligia, que é docente do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e integrante do grupo de pesquisa Diálogos Interculturais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

Depreciação

Ligia foi a palestrante do 5º Colóquio Mindlin, realizado no dia 27 de abril passado, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP, que discutiu a obra de Gama. A professora contou que pôde enriquecer sua análise sobre a importância do escritor graças à descoberta de um raríssimo exemplar da primeira edição do livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, de 1859, na Biblioteca Mindlin – muitos anos antes de sua transferência para a USP ou mesmo das atuais tecnologias de digitalização de acervos. A vida e a obra de Gama foram tema de sua pesquisa de doutorado em Estudos Portugueses e Brasileiros, pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3, na França.

Ela comparou essa edição das Trovas Burlescas com outras duas posteriores – a segunda, de 1961, publicada no Rio de Janeiro, e a terceira, já póstuma, de 1904 – e o volume Obras Completas de Luiz Gama, organizado por Fernando Góes, de 1944. A professora observou que o próprio comentário dos organizadores na edição de 1904 já, de saída, depreciava a qualidade literária do trabalho de Gama, optando por destacar, em oposição, sua atividade como abolicionista.

Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP
Foto: Cecília Bastos / Jornal da USP

Ligia considera a publicação de 1859 uma espécie de marco. Impressa em uma tipografia cujo proprietário, dez anos mais tarde, faria parte da mesma loja maçônica que Luiz Gama, a primeira edição é algo de um experimento do autor, que utilizou sua experiência profissional como tipógrafo para preparar o livro. Ao destrinchá-lo, ela observou que a página de erratas no final do volume contém uma nota ao leitor que indica que Gama e seus colaboradores haviam entrado em uma empreitada com ares de novidade em São Paulo, onde já se publicavam jornais há tempo, mas poucos livros circulavam: “Alguns pequenos defeitos de metrificação existem, que não corrigimos por insignificantes, e justificáveis, attentaa nossa condição de principiante, e carência de conhecimentos”, diz a nota.

A docente também notou que as várias epígrafes contidas na obra dão amostras de quem eram os referenciais literários do autor, como Camões, Nicolau Tolentino de Almeida, autor português que pertenceu ao movimento Nova Arcádia, e Faustino Xavier de Novaes, poeta satírico luso contemporâneo de Gama, conhecido também por ter sido cunhado de Machado de Assis. Luiz Gama, portanto, tomava como modelo uma tradição poética portuguesa que ia do classicismo ao contemporâneo, já que Faustino Xavier de Novaes lançara seu livro Poesias em 1855.

Só que Gama não copiava suas referências; ele se apropriava de seus modelos para produzir uma poesia que, carregada de sátiras, denúncias e, às vezes, também erotismo, gritava todo o tempo: “sou negro”. Seus poemas trocam imagens tipicamente europeias por equivalentes africanos e introduzem palavras como urucungo, candimba e cayumbas. Ele invoca as ninfas para homenagear a Musa de Guiné e se imagina um Orfeu de carapinha. Ele assina o livro como Getulino, termo que evoca os habitantes de uma região do norte da África chamada pelos antigos romanos de Getúlia – onde hoje se localiza uma parte da Argélia.

Ligia Ferreira o identifica como o primeiro poeta brasileiro a render homenagem à beleza das mulheres de origem africana. Também foi um pioneiro ao tratar a identidade negra como algo positivo. Ela afirma que o poeta tinha plena consciência de que o conteúdo de sua obra causaria estranhamento ao mundo branco, mas nem por isso ele teve menos prestígio ou acolhida entre a elite intelectual de sua época. Tanto é o caso que as Trovas Burlescas começam com um poema assinado por José Bonifácio de Andrada e Silva, intitulado Saudades do Escravo.

A versão digitalizada da edição de 1859 de Primeiras Trovas Burlescas de Getulino está disponível online no site da Biblioteca Brasiliana Mindlin.

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