Le Monde Diplomatique: na fronteira entre o jornalismo e a crítica intelectual

Pesquisa da FFLCH coloca no centro do debate uma das mais notórias publicações internacionais, o "Le Monde Diplomatique".

Em 2015, parte da América Latina vivenciou uma série de reviravoltas políticas que possivelmente provocarão grandes mudanças nos anos seguintes. Da perda da maioria chavista na Assembleia Nacional da Venezuela, paralela à acentuada crise política vivida pelo Partido dos Trabalhadores no Congresso Nacional, até o fim do kirchnerismo marcado pela vitória do candidato da oposição Mauricio Macri na Argentina, o continente passa por tribulações que, aos olhos da História e da imprensa, devem ser observadas e criticadas de perto.

Em tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a jornalista e historiadora Juliana Sayuri Ogassawara escolheu observar um período recente para destacar a importância do jornalismo e, em especial, dos intelectuais na crítica política. No doutorado Intelectuais no Le Monde Diplomatique: Relações entre França e Argentina (1999-2011), Juliana colocou no centro do debate uma das mais notórias publicações de inclinação editorial à esquerda, o Le Monde Diplomatique.

Por trás do objeto central de sua tese está a noção de que é papel da imprensa ser um “documento para o historiador”. Em sua opinião, a imprensa é, ao mesmo tempo, observador, narrador e protagonista de uma história.

Imprensa: ao mesmo tempo observador, narrador e protagonista da História | Foto: Pedro Bolle / USP Imagens
Imprensa: ao mesmo tempo observador, narrador e protagonista da História | Foto: Pedro Bolle / USP Imagens

O Diplô

Criado em 1954 como um suplemento do jornal francês Le Monde, o “Diplô”, como ficou conhecido internacionalmente, contava em 2013 com 47 edições internacionais, publicadas mensalmente. Da França para o mundo, o magazine acumulou contribuições de personalidades ilustres como Julio Cortázar, Doris Lessing, Eric Hobsbawm, Florestan Fernandes, Gabriel García Márquez, Jean Baudrillard, Michel Foucault, Kofi Annan e Thomas Piketty, entre outros.

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Seu objetivo é, nas palavras da pesquisadora, “oferecer uma visão alternativa, uma mirada crítica dos acontecimentos atuais, um ponto de vista singular, uma perspectiva sagaz do jogo das relações internacionais”. Optando por analisar as edições francesa e argentina, partindo do período de implementação da versão argentina em 1999, Juliana revela que sua escolha teve múltiplas motivações, incluindo a importância de Carlos Gabetta, ex-diretor d’El Dipló, que estimulou companheiros latino-americanos a iniciar edições de Le Monde Diplomatique na América Latina. Além disso, ressaltou que a redação argentina traduz todos os textos franceses e os disponibiliza para as outras edições latino-americanas. “Sua estrutura é mais consolidada por estar abrigada na Editora Capital Intelectual, que confere relativa estabilidade e estrutura econômica”, revela.

Sobre o período histórico, Juliana destaca em sua tese que em julho de 1999, quando o Le Monde Diplomatique imprimiu suas primeiras edições na Argentina, o país passava por uma grave crise econômica, com uma dívida externa na casa dos 100 bilhões de dólares e mais de 2,5 milhões de desempregados, levando à renúncia do presidente Fernando de la Rúa em dezembro de 2001, após dias de violência e manifestações nas ruas de Buenos Aires. Nesse território conturbado, a edição argentina angariou muitos leitores que buscavam uma perspectiva diferente, alternativa, sobre a crise.

Cercado por publicações de respaldo internacional e linhas ideológicas similares, tais como a revista inglesa New Left Review, a americana New Yorker e a mexicana Gatopardo, o Diplô é singular para a pesquisadora ao “se posicionar claramente diante das questões contemporâneas, levando críticas de intelectuais importantes ao leitor”, apesar de ser, em sua opinião, uma leitura difícil em tempos em que outros veículos privilegiam textos “mastigados” para o leitor.

Papel dos intelectuais

Foto: Rodrigo Sicuro
O jornalista Carlos Gabetta | Foto: Rodrigo Sicuro

Formadas por jornalistas e intelectuais, as mais de 40 páginas mensais do Diplô trazem artigos que, especialmente no contexto de crises econômicas e políticas, têm como principal objetivo oferecer ao leitor uma análise sobre os acontecimentos contemporâneos e um olhar crítico sobre à realidade. Por essa característica, Juliana resgatou, durante boa parte de seu trabalho, a chamada “história dos intelectuais”, um fenômeno relativamente novo, de acordo com a pesquisadora. Para ela, esses intelectuais “não seriam apenas homens e mulheres pensantes, mas manifestantes de um pensamento”. Alçada no pensamento do filósofo Norberto Bobbio, sua tese vem propor um olhar para a dimensão política dos intelectuais nas relações com o poder. “Quer dizer, a questão não seria apenas quem são e o que fazem os intelectuais, mas o que deveriam ser e o que deveriam fazer”.

É preciso compreender a imprensa em si como um organismo vivo.

Considerando os responsáveis pelo jornal tanto jornalistas, já que trabalham como produtores, editores e difusores de informação, quanto intelectuais, pois se posicionam nas discussões contemporâneas, a autora não exclui de sua tese o fato de que dentro das redações também existem divergências ideológicas e até mesmo pessoais. Como a época em que o ex-diretor Carlos Gabetta fez diversas críticas à ex-presidente Cristina Kirchner, enquanto Hugo Sigman, proprietário da editora Capital Intelectual, que publica Le Monde Diplomatique na Argentina, é kirchnerista. Diante do impasse, “a corda arrebentou para o lado mais fraco”, e Carlos Gabetta pediu demissão do Diplô.

Le Monde Diplomatique / Reprodução
Le Monde Diplomatique / Reprodução

Para ela, “é interessante notar como mesmo uma revista de linha tão marcada é feita por intelectuais de opiniões tão diferentes, repertórios diferentes, trajetórias diferentes”. Dentre suas conclusões, destaca-se o entendimento de que uma revista também é “um organismo vivo, feito de amizades, afinidades e animosidades, sociabilidades e sensibilidades ideológicas, filosóficas e políticas”, conta. Ainda mais, Juliana defende que é preciso compreender a imprensa em si como um organismo vivo.

Sobre como ela e o jornal enxergam o futuro cenário político da Argentina e do resto da América Latina diante das mudanças do presente, a jornalista encerra admitindo curiosidade para especular, mas se utiliza da austeridade do lado historiadora para concluir que “é uma história que ainda não se desenrolou”, e portanto, não é prudente conjecturar. Quando questionada sobre como os intelectuais e o jornalismo poderiam ajudar a esquerda a repensar seu papel na América Latina, Juliana é categórica “a meu ver, intelectuais e jornalistas não deveriam se esconder no silêncio”.

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