Atlântico Sul é enfoque privilegiado para entender história do Brasil

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) promoveu a quarta edição do Colóquio Mindlin. A edição teve como tema “História do Brasil, história territorial e história global” e foi coordenada pelo professor Luis Felipe Alencastro.
Foto: Marcos Santos / USP Imagens
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Para o professor Luis Felipe Alencastro, Brasil deve investir mais em africanistas na academia

É comum que quando ensinada na escola, a história do nascimento do Brasil se volte principalmente para as relações entre colônia e metrópole e os ciclos econômicos que fomentaram seu desenvolvimento. Mas uma abordagem mais complexa, enxergando o país como parte de um universo maior envolvendo o continente africano e toda a região do Atlântico Sul, pode ajudar especialistas e interessados a entender melhor a trajetória do Brasil.

Para discutir este enfoque, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) promoveu, no último dia 2 de março, a quarta edição do Colóquio Mindlin. A edição teve como tema “História do Brasil, história territorial e história global” e foi coordenada pelo professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne e docente da Fundação Getúlio Vargas, Luis Felipe Alencastro.

A mesa contou com a moderação de Maria Helena Machado, especialista em história social da escravidão, e professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Um oceano de importância

“Tive a sorte de trabalhar na biblioteca quando ela ainda estava localizada na casa de José Mindlin, quando fazia minha pesquisa sobre o século 19”, afirmou Alencastro ao abrir o evento, nesta edição abrigado no auditório da Biblioteca. Professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris-Sorbonne, ele também é autor e organizador de diversas obras no campo da historiografia, incluindo o volume “Império: a corte e a modernidade nacional”, segundo da coleção “História da Vida Privada no Brasil”, vencedor do prêmio Jabuti em 1998.

“Dei aula fora minha vida inteira. Fora do país, aprendi que é necessário tornar a história de Portugal e das Américas um tema interessante”, conta o professor ao explicar que a história de Portugal é “muito marginal” na Europa, já que não existem muitos especialistas sobre assunto, nem mesmo em universidades como a Paris-Sorbonne.

Foto: Wikimedia Commons
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Para ele, a explicação para esse lapso está no fato de que a história da Europa, após os anos 1970, se voltou para a própria Europa. Consequentemente, o interesse pela America Latina caiu muito na academia. Por esse motivo, o pesquisador defende que chegou a hora de discutirmos a história do Brasil por uma nova perspectiva. “O Brasil é parte da historia do Atlântico Sul e até 1850, essa é uma história inserida em um espaço muito mais amplo do que se imagina”, pontua. Foi neste território que se estabeleceram as principais relações de comércio que permitiram o crescimento de colônias, em especial por meio do tráfico negreiro, o transporte de escravos da África para territórios dominados por potências europeias.

Por muito tempo no campo da história, o oceano Atlântico foi tratado como “um espaço sem passado”. Diferente do mar mediterrâneo, alvo do estudo minucioso de especialistas que investigam sua importância na história do desenvolvimento do continente europeu, o Atlântico foi negligenciado. E na chamada história americana, apenas a porção norte do oceano recebe alguma atenção, destaca o professor. “Americanos ignoram o Atlântico Sul”, reforça ao defender que cabe aos historiadores “de fora” posicionarem a América e o Brasil dentro desse contexto que até mesmo historiadores portugueses não privilegiam.

“Camões não fala do Brasil”

Ao relembrar o foco dos interesses portugueses no começo do século 16, o historiador evocou a figura do maior poeta da Língua Portuguesa ao afirmar que, em sua obra, “Camões não fala do Brasil”. Conforme Alencastro, o interesse da metrópole ibérica estava na Ásia, não apenas comercialmente, mas até mesmo enquanto objeto de estudo geográfico. “Até 1854, o Brasil ainda era chamado de Ilha Brasil em alguns periódicos”.

Um dos motivos para isso se explica pelo fato de que na Ásia, Portugal tinha Feitorias e não necessariamente Colônias. “Por exemplo, Macau era uma porteira numa Muralha”, afirma ele ao esclarecer que esse sistema era tão eficiente para expansão comercial quanto uma Colônia.

A situação começou a mudar quando acordos entre Portugal e Espanha referentes à América Latina estabeleceram que a África, após o limite de Tordesilhas, era território a ser explorado pelos portugueses. Foi a partir dos chamados asientos – palavra espanhola que designa um tratado comercial ou contrato através do qual um país ou grupo de comerciantes recebia da coroa espanhola uma rota comercial ou o monopólio de comércio de um produto – que Portugal passou a se tornar o maior fornecedor escravos para a América inteira, dominando o mercado até que uma guerra com a Espanha estimulou regiões como Holanda e Inglaterra a entrarem no tráfico negreiro. Fato que pavimentou o caminho para a queda das nações ibéricas diante das futuras pressões inglesas contra o tráfico de escravos.

Foto: Marcos Santos / USP Imagens
Foto: Marcos Santos / USP Imagens

O Ciclo do Tráfico Negreiro

Para Alencastro, a história do Brasil deve ser considerada sempre pelas óticas micro e macro, ambas permeadas pela ascensão e queda do tráfico negreiro. Desde o primeiro debate sobre a legitimidade da escravidão que, conforme o historiador, começou na Angola, até o fato de que nenhuma das grandes fases comerciais brasileiras existiria sem esse tráfico. “Só existe um ciclo no Brasil, o do tráfico negreiro. Todos os outros são sub-ciclos, dependentes dele, açúcar, café, ouro”, reforçou categoricamente.

Outro aspecto que precisa ser compreendido para se repensar o que sabemos é o conceito de que os próprios africanos também eram colonizadores. “Oito vezes mais africanos do que portugueses compuseram o Brasil. Ao menos dez expedições saíram diretamente do Brasil para combater nas guerras angolanas, mas a Angola foi cortada na história do Brasil”, argumenta o docente.

Um exemplo sobre como o Brasil era um local estratégico para que Portugal se tornasse uma potência no mercado de escravos reside no fato de que as viagens para a África a partir do Brasil eram 40% mais curtas do que a partir das Antilhas, localizada no chamado Atlântico Norte.

Foto: Wikimedia Commons O tráfico de seres humanos através do Atlântico Sul foi significativo até o século XIX
Foto: Wikimedia Commons

O tráfico de seres humanos pelo do Atlântico Sul foi significativo até o século XIX

“O Rio de Janeiro foi o maior porto negreiro do mundo”, conta o historiador ao expandir o assunto afirmando que foi devido a sua influência que o pólo econômico do país mudou do Nordeste para o Sudeste entre os séculos 18 e 19. Para o professor, somente o Porto do Rio de Janeiro foi capaz de “transferir a energia humana” necessária para alimentar os mercados do Sudeste, enquanto o Nordeste não conseguiu acompanhar o mesmo ritmo. Conforme os estudiosos desse fato, a imigração nordestina para o Sudeste, por exemplo, começou em 1850 e não em 1930 como é popularmente afirmado.

África presente no Brasil

“Existe uma comparação imprecisa que quer abstrair a escravidão e o tráfico, comparando escravos aos camponeses europeus”, reflete Alencastro. Para ele, temos que trazer para a centralidade o papel da África. “É preciso repensar sua influência aqui, ir além da história dos afrodescendentes e sua conquista de liberdade”, conclui ao reforçar que somente compreendendo a importância do tráfico negreiro e sua influência em toda a região do Atlântico Sul, assim como na África e América Latina, será possível enxergar a história com um maior grau de profundidade.

Para o pesquisador, o Brasil deve investir mais em africanistas na academia, assim como incentivar novas abordagens sobre o conteúdo que é ministrado nos Ensinos Fundamental e Médio. A lei que instituiu o ensino de história e cultura afro-brasileira completou doze anos no dia 9 de janeiro de 2015, mas ainda enfrenta desafios para ser implementada – embora continue vital para que as novas gerações tenham uma perspectiva diferente da história ensinada até hoje.

Mais informações e a programação dos colóquios de 2015 estão no site http://www.bbm.usp.br

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