Estudo resgata história dos livros censurados pela ditadura no Brasil

Análise do conjunto dos pareceres de livros vetados no período militar revela visão do regime sobre produção cultural da época.
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Grupo Livros e Outras Mídias amplia pesquisa sobre censura na ditadura militar

No final dos anos 1980, com o fim da ditadura no Brasil e a promulgação de uma nova Constituição, tinha fim um longo período de censura à produção cultural no país. Os documentos que ainda existiam no Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP) foram, então, transferidos para o Arquivo Nacional em Brasília. São pareceres que justificam o veto ou liberação de filmes, discos, espetáculos, revistas e livros – estes últimos, objeto de estudo de Sandra Reimão, professora da Escola de Artes e Ciências Humanas (EACH) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Sandra coordena o grupo Livros e Outras Mídias, que desenvolve, entre outros projetos, uma pesquisa sobre a censura a livros na ditadura militar. A partir dos documentos oficiais do DCPC, além de pesquisa bibliográfica e entrevistas, a professora fez um levantamento inédito dos livros de autores brasileiros que foram proibidos durante a ditadura, especialmente após o Ato Institucional n. 5 (AI-5). O trabalho resultou no livro Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura Militar, publicado pela Edusp em 2011.

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Argumentos censórios

Atualmente, Sandra se detém na análise dos argumentos censórios utilizados para justificar os vetos aos livros. Estes eram submetidos à apreciação dos pareceristas sempre que alguma denúncia chegava, já que era inviável uma censura prévia a todo o mercado editorial brasileiro. Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, assim como diversas outras obras, foram censuradas com o argumento de serem “contrárias à moral e aos bons costumes”, como estabelecia o Decreto-lei 1077/70.

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“Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca: contrário “à moral e aos bons costumes”

“Havia uma busca por racionalidade, uma tentativa de dar, ao menos, uma aparência de racionalidade à ação censória”, observa Sandra. Segundo a professora, a análise dos pareceres transparece a intenção de fundamentar o veto em dois argumentos centrais: além da questão da moral e dos bons costumes, que justificava a proibição de livros considerados eróticos ou pornográficos, o argumento político se destacava nos pareceres, a partir de considerações sobre o caráter “subversivo” das obras.

Havia uma tentativa de dar ao menos uma aparência de racionalidade à ação censória.

Em Feliz Ano Novo, como era comum também em muitos outros casos, ambos os argumentos foram utilizados para justificar a não liberação e consequente apreensão dos exemplares . Segundo o parecer inicial da obra, além do emprego de linguagem pornográfica, o livro faz “alusões desmerecedoras aos responsáveis pelo destino do Brasil e ao trabalho censório”.

Sandra conta que, na época, havia até mesmo curso de formação de censores. No entanto, as orientações não davam conta de todos os aspectos que uma obra pode apresentar. “Muita coisa que era arte foi vista como pornografia”, conta a professora. É o caso de um livro de gravuras de Pablo Picasso, cujas representações de corpos levaram à proibição da obra.

Hierarquia

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Estudos mostram que censores tinham consciência da diferença entre os meios de comunicação, como o maior impacto do cinema, por exemplo

A ideia de analisar os pareceres censórios, conta Sandra Reimão, foi estimulada por várias questões que surgiram com relação a filmes inspirados em livros – no caso de um livro censurado, por exemplo, o que acontecia com o filme nele baseado? Um caso escolhido para estudo por Sandra é Lúcio Flávio – Passageiro da Agonia, livro de José Louzeiro adaptado para o cinema pelo diretor Hector Babenco.

“Uma das coisas que estão ficando bastante claras é que eles tinham plena consciência da diferença entre os meios”, explica a pesquisadora. Segundo ela, os censores compreendiam que, por seu maior alcance e impacto junto ao público, o cinema deveria estar sob uma censura mais rígida do que em relação aos livros, mais reflexivos, ou seja, havia uma hierarquia dos meios de comunicação. Lúcio Flávio gerou quatro pareceres discordantes e o filme também foi examinado mais de uma vez – a maioria dos pareceres eram concisos, de uma página só, mas dependendo do teor da obra, como nesse caso, podia haver pareceres de até nove páginas..

Todos os pareceres de livros consultados no Arquivo Nacional foram digitalizados e a ideia agora é disponibilizá-los ao público organizados em um banco de dados. Sandra estima haver cerca de 140 livros de autores brasileiros que foram vetados e 220 de autores estrangeiros.

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