Evento internacional refletirá sobre efeitos do maior massacre da humanidade

Pesquisadores de universidades de diversos países vão participar do Simpósio Internacional Segunda Guerra Mundial – 70 Anos, promovido pelo Departamento de História da FFLCH

Pesquisadores de universidades de diversos países vão participar do Simpósio Internacional Segunda Guerra Mundial – 70 Anos, promovido pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

Refletir sobre os efeitos políticos, culturais, econômicos e, especialmente, as consequências humanas de um massacre sem precedentes é a proposta dos historiadores que estarão reunidos no Simpósio Internacional Segunda Guerra Mundial – 70 Anos. O evento, promovido pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, reunirá historiadores de universidades brasileiras e da Europa num amplo debate, na tentativa de compor uma historiografia mais próxima da realidade do massacre de 5% da população mundial da época.

“A história não conheceu um morticínio semelhante. Foi o conflito militar mais sangrento de todos os tempos. As cifras registram entre 70 milhões e 80 milhões de pessoas, mas as estimativas são maiores se forem contadas as vítimas que morreram por fome, epidemias e doenças como resultado indireto da guerra”, observa o professor Osvaldo Coggiola, chefe do Departamento de História da FFLCH. “Essas cifras também não incluem as baixas nas guerras civis na Coreia e na Grécia ou nas guerras nacionais nas colônias inglesas e francesas, que foram decorrência mais ou menos imediata da conflagração mundial.”

O professor faz uma conta trágica que não fecha. Diante dessas cifras, ressalta que é muito importante a continuidade das pesquisas sobre a Segunda Guerra Mundial. “A historiografia mudou muito. Há agora uma abordagem ampliada e, o mais importante, a consciência de que um conflito semelhante pode levar a humanidade a se aniquilar ou conduzir ao fim do planeta.”

Cotidiano

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

O simpósio segue a tradição de eventos do Departamento de História, que busca demarcar um espaço de reflexão e debates sobre grandes temas da contemporaneidade. Neste ano é apoiado diretamente pelo Programa de Pós-Graduação em História Econômica, pelo Laboratório de Economia Política e História Econômica (Lephe) e pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam).

“Serão apresentadas várias mesas temáticas, conferências e comunicações livres, que vão debater o impacto do final da guerra nas lutas de independência na África e na Ásia, os efeitos econômicos da indústria armamentista na manutenção do capitalismo, os grandes movimentos de resistência contra a guerra e seus impactos culturais mais profundos, os movimentos políticos democráticos e de esquerda contra a guerra”, observa o professor Everaldo de Oliveira Andrade, docente do Departamento de História da FFLCH e coordenador do evento. “O papel e o envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial também serão um dos temas de reflexão.”

Segundo o professor, a programação busca resgatar uma imagem diferente das matizadas pelas grandes indústrias culturais e comerciais do cinema e livros de massa, especialmente os produzidos pelos Estados Unidos. “Por exemplo, ao contrário do que ficou marcado em nosso imaginário pelo grande cinema hollywoodiano, o desembarque das tropas dos Estados Unidos na Normandia foi um fato secundário no teatro de guerra europeu, que era travado principalmente no leste, entre Alemanha e União Soviética”, explica Andrade. “Quem venceu a máquina de guerra nazista foram os soviéticos, que sofreram uma destruição brutal de vidas, com dezenas de milhões de mortos, e de recursos econômicos. Mas essa simples constatação de um fato histórico elementar implica admitir, ainda hoje, uma capacidade da economia planificada socialista que seria irreconciliável com a economia de livre mercado dos Estados Unidos.”

Com esse exemplo, é possível demarcar que o território da historiografia, da interpretação, dos debates é um espaço rico e necessário para ser explorado pela investigação acadêmica. “Há uma viva disputa pela interpretação da Segunda Guerra Mundial que segue tendo efeitos sobre nosso cotidiano”, salienta Andrade. “A Segunda Guerra Mundial precipitou a humanidade nos limites da civilização, cujos marcos mais salientes foram o Holocausto nazista contra os judeus e o bombardeio nuclear dos Estados Unidos contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Dezenas de milhões de mortos e destruição brutal de recursos econômicos que provocaram uma regressão das condições de vida de milhões de seres humanos.”

Refugiados

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

Na avaliação do professor Everaldo Andrade, esses marcos de destruição prosseguem de diferentes formas no mundo contemporâneo. “A pior consequência é que a paz não prevaleceu. Mas a indústria da guerra, que continua a assombrar dezenas de sociedades e provocar tragédias humanitárias, como vemos hoje na Síria, é uma reflexão atual que remete aos efeitos das novas tecnologias e seu potencial de controle sobre o nosso cotidiano por parte das grandes corporações e Estados centrais. Além disso, a própria disputa por recursos econômicos e zonas estratégicas vitais pelas grandes potências militares e econômicas – que esteve na origem da Segunda Guerra Mundial – segue sendo, como antes, uma herança que a ONU não permitiu superar.”

Importante lembrar que a Síria e o drama dos refugiados estão na pauta da ONU. Numa assembleia sobre o assunto realizada no final de setembro, que reuniu representantes do governo de 193 países, não foi apresentada nenhuma solução humanitária. Entre os discursos do presidente Barack Obama e do seu adversário, o presidente russo Vladimir Putin, há um fluxo de congestionamento humano. Milhares de refugiados dos conflitos na Síria, Iraque e Afeganistão, que buscam asilo político, sofrem a ameaça premente do fechamento das fronteiras dos países da Europa Oriental, como a Bulgária, Sérvia, Romênia e Eslovênia.

“O drama dos refugiados da Síria e dos haitianos no Brasil infelizmente mostrou ao mundo que há uma herança mais profunda do significado da Segunda Guerra Mundial”, explica Andrade. “As instituições fundadas pelos vitoriosos, após os acordos de Yalta e Potsdam no pós-guerra, mantiveram o controle do mundo nas mãos das mesmas cinco grandes potências que hoje controlam a ONU através do restrito Conselho de Segurança. A guerra a serviço desses grandes interesses econômicos e geopolíticos do mercado ameaça todos os povos e esvazia o suposto papel pacificador da ONU.”

Andrade afirma que o drama dos refugiados da Síria mostrou ao mundo, “de maneira escandalosa”, um drama também próximo dos brasileiros: os milhares de haitianos – cerca de 56 mil, segundo o Ministério da Justiça – que entram no Brasil pelo Acre e seguem de ônibus para alcançar os Estados do Sul e Sudeste.

Do Holocausto aos massacres étnicos

No decorrer de três dias (10, 11 e 12 de novembro), a Segunda Guerra Mundial será debatida por pesquisadores de universidades públicas e particulares do Brasil e também da França, Itália, Espanha e Portugal, entre outros países, durante o Simpósio Internacional Segunda Guerra Mundial – 70 Anos. O Holocausto judeu e os massacres étnicos são alguns dos temas a ser debatidos.

O professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie Flávio de Leão Bastos Pereira focalizará os princípios de Nuremberg. “O regime nacional-socialista subverteu as bases do direito ao longo de seu projeto de poder, de modo a valer-se de uma visão de legalidade e positivismo distorcidos, baseada nos princípios nazistas, buscando revestir suas bases racistas, expansionistas, eugênicas e militaristas de licitude e legitimidade e transformando em política de Estado o extermínio de povos considerados, à luz de suas bases totalitárias e racistas, inferiores”, afirma. “Com a derrocada do regime, iniciados os julgamentos de Nuremberg, novos princípios foram estabelecidos e serviram de sustentáculo para futuros tribunais internacionais estabelecidos em vista dos novos genocídios, praticados ao longo do século 20 e início do século 21.“

A resistência antinazista na Europa ocupada também será debatida pelos pesquisadores. O professor Marcos Napolitano, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, vai apresentar um balanço histórico-historiográfico sobre a resistência antifascista na Segunda Guerra Mundial, com foco no caso francês. “A Resistência Francesa, como objeto de memória e da história, foi tomada, por muito tempo, como paradigma das resistências antifascistas”, explica. “Além disso, foi central na reconfiguração das identidades políticas francesas, à esquerda e à direita, no pós-guerra. Desde os anos 1970, entretanto, é um tema em permanente revisão, tensionado por outras memórias e abordagens historiográficas.”

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

O simpósio também vai discutir os programas econômicos em disputa na época. “Vou mostrar as principais características da planificação econômica de tipo soviética”, esclarece Apoena Canuto Cosenza, doutorando do Departamento de História da FFLCH e integrante do Laboratório de Economia Política e História Econômica (Lephe) da USP, que apresentará uma comunicação no evento. “Farei uma análise histórica do desenvolvimento do planejamento feito pelo Estado comunista em diferentes etapas, até o advento do primeiro plano quinquenal. Em seguida, mostrarei um balanço dos planos quinquenais até a Segunda Guerra Mundial, apontando alguns avanços na forma de planificação. Por último, serão discutidas algumas das vantagens do planejamento econômico que foram absorvidas por países em desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial.”

Uma análise pontual sobre a atuação da mídia na época é o foco do tema “Se Eu Fosse Negro: Raça, liberalismo e cidadania nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial”. O professor Robert Sean Purdy, também do Departamento de História da FFLCH, fará uma análise das 44 colunas publicadas entre 1942 e 1945 pela revista mensal Negro Digest, dos Estados Unidos, uma versão da tradicional Seleções. “Escrita por proeminentes intelectuais, políticos, religiosos, negociantes, artistas e atletas brancos, essa coluna regular tornou-se umas das mais populares atrações entre os leitores da revista e incluía contribuições das mais variadas personalidades do país, tais como a primeira-dama Eleanor Roosevelt, o romancista e roterista comunista Howard Fast e o ator hollywoodiano Edward G. Robinson. Argumentamos que as colunas refletiram bem as contradições do projeto liberal do New Deal: aparentemente inovadoras, inclusivas e antirracistas, também apontaram os estreitos limites de cidadania na época e a persistência da supremacia branca no país.”

Uma nova história da guerra

“A história é um permanente fazer-se e refazer-se da autoconsciência das sociedades.” Com essa certeza, Osvaldo Coggiola lança, pela LF Editorial, o livro A Segunda Guerra Mundial – Causas, estrutura, consequências. Em uma análise que segue a nova historiografia pontuada por pesquisas e reflexões, o professor contextualiza a história e, ao mesmo tempo, ilumina o passado.

Nessa abordagem, Coggiola aponta a hipótese de que o mundo padeceu, no século 20, de uma “segunda Guerra dos Trinta Anos”, de 1914 a 1945. Nessa interpretação, a Segunda Guerra Mundial teria sido a continuidade da Primeira. Porém, na avaliação do professor, a Segunda Guerra Mundial não decorreu naturalmente da Primeira, sendo perfeitamente evitável. “A prática de massacres em massa, elemento mais visível de continuidade entre ambos os conflitos, foi, na Segunda Guerra Mundial, dirigida principalmente contra a população civil. Foi, antes do mais, um retrocesso histórico da humanidade em seu conjunto. Há outra diferença importante entre os dois conflitos mundiais. A Revolução de Outubro de 1917 foi o acontecimento mais importante da Primeira Guerra Mundial, e o principal fator que precipitou seu fim.”

Agora, no caso da Segunda Guerra Mundial, a revolução social a precedeu, na Espanha e na França, mas fracassou. “Se tivesse sido vitoriosa em um desses países, ou nos dois, todo o panorama político europeu e, até certo ponto, mundial, teria mudado por completo.”

Coggiola traz uma visão da guerra e da crise que a precedeu. Inclui suas realidades e virtualidades. “O conflito mundial envolveu as mais longínquas regiões do planeta, nos mares e na terra, na neve e no sol escaldante do deserto. O adiamento da resolução dos conflitos que levaram à Primeira Guerra Mundial e da revolução socialista que nela se originou, no primeiro pós-guerra, foi pago com um preço inédito em vidas humanas, especialmente forte nos países que estiveram no centro desses problemas: entre 20 milhões e 30 milhões de mortos na União Soviética, 13 milhões na Alemanha, entre 10 milhões e 15 milhões na China (na Guerra Sino-Japonesa, de 1937 a 1945), sem contar a ‘qualidade’ das mortes, que incluíram cenários de degradação humana nunca vistos na história, nos campos de concentração nazistas, nas câmaras de gás, nas políticas de ‘extermínio total’ de judeus, ciganos, homossexuais, deficientes mentais e outros, nos massacres em massa na Europa oriental, nos bombardeios de muitas cidades europeias, no ataque nuclear contra duas cidades japonesas.”

Mais informações

A Segunda Guerra Mundial – Causas, estrutura, consequências, de Osvaldo Coggiola, LF Editorial, 434 páginas, R$ 90,00

O Simpósio Internacional Segunda Guerra Mundial – 70 Anos será realizado nos dias 10, 11 e 12 de novembro, das 9h às 19h30, no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP (Av. Prof. Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, São Paulo). Entrada grátis. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 3091-3769 e na página eletrônica www.segundaguerramundial.fflch.usp.br

Leila Kiyomura / Jornal da USP

Scroll to top