História e a arqueologia indígena no Brasil são retomadas em seminário do LEER

Perseguições, genocídios e descaso sofridos pelos índios no Brasil ao longo dos séculos foram discutidos em seminário promovido pelo LEER.

“A só lembrança do que se seguiu faz tremer de indignação e vergonha. Onde haverá alma de brasileiro que não vibre uníssona com a nossa ao saber que toda aquela população de homens, mulheres e crianças morreu queimada dentro de suas palhoças incendiadas?”

As palavras do Marechal Rondon foram lembradas pelo jornalista e pesquisador da Universidade de Coimbra, em Portugal, Felipe Milanez, durante o seminário Índios no Brasil – Vida, Cultura e Morte, realizado de 12 a 14 de maio no auditório da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP, na Cidade Universitária.

Foto: Cecília Bastos
Foto: Cecília Bastos

O evento trouxe reflexões críticas sobre a história e a arqueologia indígena no Brasil e serviu como palco de debates e denúncias. Foi organizado pelo Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, coordenado pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro. A abertura do encontro contou com a presença do vice-reitor da USP, Vahan Agopyan, e do diretor da FFLCH, Sérgio Franca Adorno de Abreu.

O seminário lançou as bases da Cátedra Indígena, que funcionará no LEER com a missão de promover o debate e a pesquisa sobre a temática. A cátedra é informal, disse Maria Luiza, no sentido de que esbarra no conceito tradicional de cátedra, pois, segundo ela, não seria possível ter professores titulares e palestrantes com graduação capazes de atender à burocracia de uma cátedra acadêmica.

Muitas atividades da Cátedra Indígena contarão com “saberes constituídos de lideranças indígenas, que levarão suas experiências aos estudantes e pesquisadores”, diz Maria Luiza. Segundo a professora, será um núcleo de estudos e buscará criar uma rede multidisciplinar, com vistas à publicação de estudos. Deverá funcionar como centro catalisador de denúncias e buscará impulsionar uma agenda de políticas públicas indigenistas, como tem ocorrido em outras frentes em que o LEER atua. Existem hoje no Brasil mais de 300 povos indígenas – cuja origem remonta há milhares de anos –, que falam cerca de 200 línguas e habitam 5 mil aldeias.

Foto: Marcos Santos
Foto: Marcos Santos

O seminário incluiu ainda lançamentos de livros sobre a temática indígena e a abertura de uma exposição sobre Hercule Florence. No final do encontro, o LEER divulgou uma Carta Aberta em Defesa dos Povos Indígenas, criada pela comissão organizadora do seminário. “É preciso olhar com cuidado para esse passado, para que ele não se repita nas frágeis estruturas democráticas atuais, uma democracia, como diria o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, de ‘baixíssima intensidade’ – e que é sentida profundamente pelos povos indígenas que não encontram canais para serem ouvidos ou consultados por projetos de Estado (e/ou terceirizados) que afetam sua existência”, traz o documento.

Opressão

Algumas das passagens sanguinolentas como a relatada pelo Marechal Rondon – citada no seminário pelo jornalista Felipe Milanez – não pertencem apenas ao passado, mostraram especialistas em palestras no evento. A opressão ao indígena ainda é o nosso presente, do qual participam uma sociedade desinformada e um Estado omisso. A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão criado para, entre outras coisas, demarcar terras e dar proteção aos nativos, padece de uma estrutura frágil, o que resulta no esvaziamento de poder frente à força dos lobbies ruralistas, segundo os palestrantes.

“O negro, a mulher e o movimento dos sem-terra têm ministérios e seus dirigentes são representativos e efetivos, ao passo que a Funai hoje está totalmente esvaziada. Tem uma presidência interina há mais de quatro anos, com uma pessoa colocada lá pelo Ministério da Justiça. Não se sabe nem quanto dinheiro a Funai tem para chegar até o final do ano”, disse Marcos Terena, liderança indígena mundialmente conhecida, que fez a conferência inaugural do seminário.

Foto: Cecília Bastos
Foto: Cecília Bastos

Terena lembrou que, apesar de o Brasil ser signatário da convenção de proteção aos povos indígenas, os governantes não conseguem pôr em prática as recomendações internacionais. O documento diz que é obrigatória a consulta aos indígenas de forma livre, prévia e informada antes da tomada de ações que envolvam essas populações. “Não se pode chegar a uma aldeia com um pacote de projetos prontos”, disse Terena.

“A Universidade é um aliado estratégico para podermos trilhar o futuro nos rastros dos nossos antepassados. Vemos a academia como um cenário de liberdade, que deve propiciar oportunidades e enxergar na diferença um potencial para novos conhecimentos”, acrescentou o líder indígena.

Terena também criticou o chamado “ressurgimento” indígena, em que prováveis descendentes se autodeclaram dessa etnia. “O cidadão da selva que saiu da aldeia pensa que depois de 20 ou 30 anos pode ser índio. Ele não fala mais a língua, não tem a tradição nem a referência territorial, mas quer a terra. Pertence a um sistema organizacional que não é indígena e sim da escola que frequentou. Ele não respeita os mais velhos nem as mulheres. E daí descobre que não pode ser um cidadão das selvas isolado. Porque nossa filosofia nasce a partir da vivência tribal”, defendeu.

Correrias

portal20150528_6As “terras sem dono”, que em diferentes ciclos de desenvolvimento despertam o interesse de fazendeiros, grileiros, mineradores, do próprio Estado e, mais recentemente, de traficantes, têm sido o palco de batalhas massacrantes de culturas e etnias inteiras. Acuados, os índios são obrigados a se esconder e a correr quase que diariamente de grupos dominadores, num processo contínuo de extermínio chamado por estudiosos e sertanistas como as “correrias”.

As correrias e os genocídios também foram abordados no seminário Índios no Brasil. João Paulo Jeannine Andrade Carneiro, do Museu do Índio da Unesco, por exemplo, falou sobre um caso de genocídio ocorrido no Alto Juruá.

Na palestra “Belo Monte: protótipo de um extermínio étnico anunciado”, o promotor de Justiça e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Túlio Chaves Novaes disse que a instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte constitui um espaço de “ausência de direito” porque está sustentada no “fato consumado”. “Belo Monte já enfrenta 22 ações judiciais. Todas as empresas envolvidas na construção da usina participaram do esquema do Petrolão. A implementação das condicionantes dos relatórios de impactos ambientais tem enfrentado dificuldades no sentido de atribuir responsabilidades, seja por parte do Estado ou das próprias empresas”, disse Novaes.

O jornalista Felipe Milanez ilustrou sua fala com depoimentos de sertanistas que entrevistou para o livro Memórias Sertanistas – Cem anos de indigenismo no Brasil, que será lançado pelas Edições Sesc. As narrativas trazem as fugas dos índios e a consequente desagregação pela perda da terra. Mostram, acima de tudo, a atuação dos sertanistas, espécie de “profissionais-ativistas” dedicados a resgatar e a proteger a cultura indígena.

Ainda hoje, muitos sertanistas são adeptos da ideologia pregada pelo Marechal Rondon e normalmente são os que estão na linha de fogo, tentando salvar os direitos dos indígenas. Muitos de fato praticam o lema rondoniano, “Morrer se preciso for, matar jamais”, contou Milanez.

Para o jornalista, os sertanistas funcionam como agentes da própria contradição do Estado, exercendo o papel de mitigadores dentro do sistema. “A meu ver, eles não estão lá para colonizar, mas para defender os direitos dos indígenas. Atuam mitigando a estrutura do Estado. É muito mais um ativismo do que um projeto desse aparato”, disse Milanez.

Resistência

Covardia, passividade, preguiça, desorganização. A imagem atribuída aos indígenas pode estar muito mais relacionada a um discurso colonizador e etnocêntrico do que àquilo que de fato ocorreu no encontro entre o indígena e o colonizador. Por isso, uma arqueologia do passado recente, com novos aportes teóricos, se faz necessária para entender a complexidade e a brutalidade das experiências vividas por povos indígenas frente ao colonizador, mostrou no seminário a professora Fabíola Andréa Silva, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.

Segundo a professora, uma nova agenda da arqueologia dos povos indígenas é crítica ao pressuposto de que os nativos se comportavam passivamente frente ao colonialismo. Ao contrário, as pesquisas têm dado provas de que os indígenas, de diferentes maneiras, foram resistentes diante das tentativas de dominação.

Recentemente, Fabíola coordenou um projeto de arqueologia colaborativa com os asurinis do Xingu, tendo esse povo como os responsáveis pela dinâmica da pesquisa, definindo percursos, locais de acampamento e sítios a serem escavados. O conhecimento prévio dos integrantes asurinis norteou todo o trabalho e permitiu a redescoberta da própria cultura, mostrou a professora, num relato emocionado.

Em vez de desaparecerem, muitos povos foram resilientes e reafirmaram suas identidades. “A dinâmica de mobilidade e ocupação territorial pode ser entendida como uma estratégia de resistência para assegurar a continuidade de seu modo de vida frente aos impactos decorrentes do colonialismo e da expansão capitalista na região do médio rio Xingu, na Amazônia”, disse Fabíola.

Olhar de viajante

Foto: Marcos Santos
Foto: Marcos Santos

O seminário Índios no Brasil: Vida, Cultura e Morte incluiu a exposição “O Olhar de Hercule Florence sobre os Índios Brasileiros”. Em cartaz até o dia 30 de junho na sala Multiuso da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP, tem curadoria de Glória Kok e Francis Melvin Lee. É resultado de uma parceria entre o Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) da USP, o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, o Instituto Hercule Florence e o Instituto Socioambiental.

Entre os materiais expostos estão objetos cedidos pelo MAE, videodocumentários e textos, além das aquarelas do “artista viajante” francês Hercule Florence (1804-1879). Trata-se de um roteiro artístico e histórico sobre determinados grupos indígenas, em especial os que viviam em caminhos fluviais dos rios Tietê, Paraná, Paraguai, Tapajós e afluentes.

Os desenhos foram feitos durante a Expedição Langsdorff, a famosa viagem de reconhecimento do interior do Brasil patrocinada pelo czar russo Alexandre I e chefiada pelo médico alemão Georg Heinrich von Langsdorff, em que Florence documentou em textos e desenhos suas impressões sobre a paisagem, os índios, a fauna e a flora.

A Expedição Langsdorff percorreu cerca de 13 mil quilômetros, de setembro de 1825 a março de 1829, com uma equipe de cientistas, botânicos, naturalistas, cartógrafos e escravos, tendo Adrien-Aimé Taunay como o primeiro desenhista, além do próprio Florence.

Muitos morreram, se afogaram ou se suicidaram pelo caminho. O próprio mentor e líder da expedição enlouqueceu. Mas, afinal, o resultado da trágica aventura corresponde ao registro mais apurado da natureza e da sociedade do Brasil do século 19. Esse tesouro ficou perdido por quase um século e somente em 1930 foi redescoberto nos porões do Museu do Jardim Botânico de Leningrado, hoje São Petersburgo, na Rússia.

“O índio retratado por artistas como Florence e Taunay não é mais o índio com fisionomia greco-romana. É um índio com cara de índio tal qual conhecemos. Essas pinturas nos deram um olhar apurado do que são os indígenas. A documentação iconográfica de Florence foi reconhecida só no final do século 19, 70 anos depois de ter sido enviada para São Petersburgo”, afirma o professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) Boris Kossoy, que durante o seminário coordenou uma mesa sobre os desdobramentos da exposição.

Sylvia Miguel / Jornal da USP

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