Mesmo lúdicos, livros infantis criticaram ditadura, revela estudo da FFLCH

Estudo de Juliana Camargo Mariano analisa obras infantis e conclui o sucesso na representação da realidade social de Brasil e Portugal em períodos ditatoriais.

Valéria Dias / Agência USP de Notícias

Estudo comparativo de livros infantis escritos pela brasileira Ruth Rocha e pelo português José Cardoso Pires mostra que ambos conseguiram representar, nas obras analisadas, a realidade social e política de Brasil e de Portugal em períodos ditatoriais dos dois países. Isso ocorreu sem a perda do aspecto lúdico encontrado em livros escritos para o público infantil.

Em sua dissertação de mestrado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a professora de ensino fundamental e médio Juliana Camargo Mariano analisou quatro livros da escritora Ruth Rocha. É a chamada tetralogia de reis: O Reizinho Mandão (1978), O Rei Que Não Sabia de Nada (1980), O Que os Olhos Não Vêem (1981), e Sapo Vira Rei Vira Sapo (ou a Volta do Reizinho Mandão) (1982). As obras foram publicadas no final da ditadura militar brasileira, que durou de 1964 a 1985.

Já a obra do escritor José Cardoso Pires foi o livro infantil Dinossauro Excelentíssimo (1972), publicado durante a ditadura iniciada pelo presidente de Portugal António de Oliveira Salazar em 1932. Com sua morte, em 1968, Salazar foi substituído por Marcello Caetano, que ficou no poder até 1974, quando foi deposto pela “Revolução dos Cravos”, que encerrou o período ditatorial.

Segundo a pesquisadora, os dois autores utilizam elementos de paródia, alegoria e carnavalização como recursos para transpor para os livros a representação de situações políticas reais. “Nenhuma das obras sofreu censura, pois os censores julgavam esse tipo de livro como ‘literatura menor’, diz.

“As cinco obras confrontam os períodos históricos analisados. Quando lidos pelas próprias crianças, elas não associam as histórias com fatos políticos, mas fazem uma ligação com eventos do dia a dia envolvendo a relação com os amigos, os pais e a escola”, explica. “Porém, quando pais, professores ou contadores de histórias lêem esses livros, há uma outra percepção e cabe a essas pessoas fazerem uma ponte com a situação política dos países, sem, é claro, tirar o lado lúdico da atividade”, completa, lembrando que tratam-se de obras que podem ser lidas por crianças a partir dos nove anos. Outro aspecto em comum é o uso de muitas ilustrações. Juliana analisou, com mais profundidade, cerca de 20 ilustrações das cinco obras.

Salazar e o Dinossauro

O livro de José Cardoso Pires conta a história de um menino de origem muito pobre que foge de sua cidade natal para estudar. Ao chegar à idade adulta, ele se forma em Direito e toma o poder no “Reino do Mexilhão”. Seu governo é marcado por uma “autoridade autoritária”. Isso provoca uma metamorfose em seu organismo e ele se transforma em um dinossauro.

“Há muita semelhança da história com o governo de Salazar. O ditador também é de origem humilde e graduado em Direito”, compara a pesquisadora. “Salazar não gostava de tirar fotos. Ao tomar o poder, distribuiu santinhos para a população. Ele teve um acidente vascular cerebral e ficou hospitalizado por dois anos antes de morrer. Após o AVC, ainda acreditava ser o presidente do Conselho do país, como ocorreu com a personagem fictícia Douktor Dinosaurus”, explica.

Cala a boca já morreu

Em O Reizinho Mandão, Ruth Rocha conta a história de um menino rico que chega ao poder quando o rei, seu pai, morre. Como não tem maturidade para o cargo, ele cria leis absurdas como “Fica terminantemente proibido cortar a unha do dedão do pé direito em noite de lua cheia”. Por conta disso, a população começa a se calar. Vendo o silêncio e a infelicidade que pairavam no reino, o reizinho se redime e vai buscar ajuda numa cidade onde há alegria e felicidade.

Ao consultar um sábio, este critica suas atitudes dizendo que o reino ficou daquele jeito por culpa dele mesmo. A solução seria encontrar uma criança que ainda falasse e que lhe desse uma lição de moral. O reizinho sai de casa em casa em busca da tal criança e, quando a encontra, pergunta se ela fala. A criança, nervosa ao ouvir de um papagaio a expressão “Cala a boca!”, responde “Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”. Com isso, o reino volta a ser feliz e o reizinho foge do lugar.

Contador de histórias

“Em todos os livros analisados na dissertação temos a presença do contador de histórias, figura pouco valorizada na literatura do século XX, mas que desempenha uma função muito importante no desenvolvimento psicológico e intelectual do ser humano. Ele pode ser o avô, o pai, a mãe, o tio, o professor”, diz Juliana.

Para a pesquisadora, “o contador cria um elo entre o ouvinte e a narrativa, fazendo com que a última preserve a essência de verdade em seu discurso e assim perdure no tempo. Ele é responsável em colaborar na formação da personalidade do ouvinte e ainda diverti-lo”, finaliza. A pesquisa teve orientação da professora Maria Lúcia Pimentel de Sampaio Góes.

Imagens: reprodução

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