Pesquisa da ECA aponta que interação e coletividade marcam autoria em tempos de Internet

Apesar dos aspectos colaborativo e coletivo, credibilidade e identificação do autor ainda se fazem presentes.

Bruna Romão / Agência USP de Notícias

O ambiente digital da internet tem permitido cada vez mais a participação de usuários na construção de conteúdos, seja por intervenções diretas, como na enciclopédia virtual colaborativa Wikipédia, ou por diálogos no espaço reservado a comentários em blogs ou sites de notícias. Marcada pela coletividade, porém, essa nova forma de escrita não deixa de lado a relevância do autor. “Nesse novo padrão autoral interativo, o crédito pela autoria continua muito importante”, explica a jornalista Beatriz Cintra Martins, responsável por uma pesquisa da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP que estudou os aspectos envolvidos nesses processos autorais interativos de escrita na rede mundial de computadores. A tese de doutorado Autoria em rede : um estudo dos processos autorais interativos de escrita nas redes de comunicação foi defendida em março de 2012 e contou com a orientação do professor Artur Matuck, da ECA.

A partir do estudo, foram identificadas duas formas de escrita em rede, tipificados pela pesquisadora. Em primeiro lugar, haveria a autoria interativa colaborativa, em que as pessoas podem interagir diretamente com os textos. “Aquele texto é feito de forma realmente compartilhada e coletiva e será resultado de várias intervenções de forma colaborativa”, relata Beatriz. Esta categoria corresponde às interações que acontecem na enciclopédia virtual Wikipédia, por exemplo, e outros websites que partem do mesmo princípio colaborativo, as plataformas wiki.

O segundo tipo de autoria é denominado dialógico e se refere especialmente à relação encontrada em blogs, em que um texto principal tem novas observações agregadas a si em função de comentários dos leitores. “O texto principal está publicado e não é alterado. Mas por meio dos comentários são acrescentadas novas informações”, comenta a jornalista.

Antes de chegar a essas conclusões, a pesquisadora observou e realizou pesquisas empíricas com a Wikipédia, estudando o histórico do verbete Faixa de Gaza e contribuindo para as páginas Jogos Olímpicos de Verão de 2016Direito Autoral e Creative Commons, bem como analisou o website Overmundo, em que os próprios usuários produzem notícias sobre cultura brasileira, nas quais há espaço para comentários e avaliações de outros internautas. Também fizeram parte do estudo a criação de um blog chamado Autoria em rede, que permitiu interação e diálogo com o público, além de maior divulgação da pesquisa, e um experimento wiki, em que uma plataforma aberta foi disponibilizada ao público do site, permitindo-lhes contribuir para um artigo sobre Autoria em rede.

A autoria ontem e hoje

O trabalho também reuniu dados de pesquisa histórica sobre a variação da produção e atribuição de textos desde a antiguidade até os dias atuais. Apesar de aparentemente inovadora, a concepção coletiva de autoria já existia durante a Antiguidade Clássica e a Idade Média. É durante o período moderno, apenas, que surge e se fortalece a noção de autoria e criatividade ligadas diretamente à subjetividade. “A própria modernidade traz um projeto de um sujeito autônomo”, ressalta Beatriz.

A autoria em rede não é apenas reflexo de avanços da tecnologia e da internet, mas, especialmente, resultado de um processo de questionamento da concepção de autor individual e autônomo iniciado ainda no século XIX, com apogeu na segunda metade do século XX. Embora deslocada e dissolvida, ela ainda carrega reflexos da concepção moderna: reputação e credibilidade continuam importantes. Para administrar essas questões, a comunidade virtual cria suas próprias ferramentas de controle e avaliação.

Validação de conteúdo

website Overmundo e uma infinidade de sites e blogs utilizam um sistema distribuído para validação de conteúdo, em que os usuários tem a possibilidade de aprovar ou não os textos, atribuindo-lhes notas, estrelas ou likes. Esse modelo, que pode ser chamado de rankeamento, é comum inclusive em sites de compra online, como o E-bay. “São maneiras que estão sendo criadas para substituir o modelo tradicional em que essa avaliação passava pelo crivo de especialistas”, comenta a jornalista.

Já no caso da Wikipédia, explica Beatriz, a avaliação é mais centralizada. Existe uma série de regras que os contribuintes devem seguir para que o conteúdo acrescentado por eles seja mantido nos verbetes, como, por exemplo, citar as fontes das informações incluídas.

Em seu sistema de validação e fiscalização estão envolvidos usuários com maiores privilégios e até mesmo softwares que revisam e editam os conteúdos. “Uma grande parte das edições é feita por robôs. E também há robôs que inserem textos na Wikipédia a partir de bancos de dados abertos”, conta. Ao todo, mais de 20% do total de edições do site é feita por robôs. Não é incomum, relata Beatriz, em função desse modelo centralizado de validação, que ocorram as chamadas “Guerras de Edição”, entre novos usuários, com menos prática e reputação, e verificadores de conteúdo.

A reputação dos colaboradores também é levada a sério na “enciclopédia livre”. Apesar de ser possível a edição anônima, os colaboradores identificados e com o maior número de contribuições reconhecidas ganham maior poder, constituindo-se em administradores supervisores do projeto.

A comunidade em rede encontrou, ainda, outras maneiras de reconhecer e creditar autores. “Uma referência é o movimento software livre, que conseguiu consolidar um modelo produtivo interativo, cooperativo e baseado na reputação”, lembra a pesquisadora. Um dos exemplos mais famosos desse modelo é o sistema operacional Linux, para o qual centenas de programadores colaboram voluntariamente e são identificados no pedaço do código que aperfeiçoaram no programa. A jornalista cita também a rede social de microblogs, Twitter, em que o retweet, réplica da postagem de outra pessoa, constitui-se em uma forma de dar referência à fonte da informação.

Mais informações: email bia.martins@gmail.com

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