Izabel Leão / Jornal da USP
“Matemático, físico, engenheiro, pensador e crítico de arte, Mario Schenberg, com seu pensamento aberto ao universal, à física, e à astrofísica, afirmava que o cientista deve se aproximar da atitude ousada e criativa do artista, por ser a arte um território livre, e dessa forma o cientista consegue desenvolver uma história da ciência com perspectivas e saídas múltiplas.” Foi o que disse a professora Elza Ajzenberg em seu discurso de abertura do 24º Seminário Schenberg – Arte e Ciência: 100 anos, ocorrido no dia 21 de maio, no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual. O evento faz parte das comemorações dos 80 anos da USP e foi realizado em parceria com o Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo e do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
O evento contou com a presença dos amigos de Mario Schenberg, que resgataram da memória momentos de convivência com o físico: o professor Silvio Roberto Salinas, do Instituto de Física da USP, os artistas plásticos Gregório Gruber e Caciporé Torres e o assessor de Assuntos Estratégicos do governo estadual, João Carlos Meireles.
Considerado por Albert Einstein uma das dez personalidades mais importantes do mundo da física e da ciência do século 20, Schenberg deixou um legado de mais de 400 documentos escritos sobre arte, que hoje compõem o Centro Mario Schenberg, para “serem degustados e pesquisados”, segundo afirmou Elza.
Salinas contou que Schenberg, em 1935, já tinha artigo publicado no exterior, na revista Phys, e que sua obsessão durante a vida toda foi unificar as ciências. “Suas ideias repercutem até hoje. Teve ampla e intensa produção, com mais de cem artigos científicos em campos fundamentais da física teórica, astrofísica e física matemática. É interessante notar sua capacidade de pôr em prática as complexas ligações entre física experimental, física teórica, física aplicada e a tecnologia”, ressaltou Salinas.
Processo criativo
Elza lembrou que foram os artistas que, nos anos 60, escolheram um físico como membro do júri de arte da Bienal. “Podemos dizer que tanto o físico teórico quanto o crítico de arte ou o político contestador estão em busca do novo. Esse é o eixo em que se moveu Schenberg”, disse.
O artista plástico Gregório Gruber lembrou que convivia com Schenberg em sua casa desde pequeno, pois seu pai, Mario Gruber, também artista, era grande amigo do físico. “Lembro-me claramente de não saber quem ele era e achava chato ir visitá-lo com meu pai. O apartamento era repleto de obras de arte no chão, nas estantes, em todos os lugares, e nada daquilo me interessava até então. Foi só na adolescência que passei a me questionar por que um físico se interessaria por arte. Tive a honra de ter um artigo escrito por ele sobre a minha obra artística.”
Gruber contou ainda que, com o tempo, foi percebendo qual a relação da ciência com a arte. “Ambas têm relação direta com o processo criativo”, entusiasma-se. “É importante valorizarmos o pensamento livre de Schenberg, pois hoje a arte é muito presa a conceitos e tendências.”
O escultor e desenhista Caciporé Torres contou que conheceu os trabalhos de Alfredo Volpi visitando a coleção de Schenberg, que foi quem o projetou como um dos grandes artistas brasileiros. “Foi aí que conheci Mario Schenberg como amante das artes, pois causava-me estranhamento um cientista ter sensibilidade pela arte. Fiquei encantado em conhecê-lo. Era um colecionador de arte fantástico. Criava coisas novas na Bienal, que, no entanto, hoje está se autoflagelando.”
Relato trágico
Para o assessor de Assuntos Estratégicos do governo estadual, Carlos Meireles, Mario Schenberg era um grande humanista. Ambos foram companheiros de cela na época da ditadura. Num relato trágico, mas ao mesmo tempo mágico, segundo suas palavras, ele conta: “Éramos, no cárcere, lutadores por um Brasil unido. Vínhamos de um momento histórico dramático, que foi a Segunda Guerra Mundial, depois a reconquista de um início de um processo democrático no Brasil e os valores fundamentais que presidiram o momento político na década”.
Meireles relatou que o denso contexto político, econômico e social em que Mario Schenberg começou sua carreira como professor, físico, humanista e crítico de arte. “O humanismo se renovava principalmente na Europa e, no Brasil, se transformou numa plataforma política. Na cela, éramos 32 prisioneiros para um espaço em que cabiam no máximo cinco pessoas. Fazíamos rodízio para deitar. Nesse clima de tragédia, pudemos ter as melhores trocas de ideias. Com o brilho da inteligência de Schenberg, discutimos as ideias do filósofo Teilhard de Chardin, que Mario conhecia muito bem. Essa memória trágica e mágica não poderia deixar de ser transmitida neste momento do seu centenário”.
“A intuição é que mostra a solução dos problemas”
A coordenadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes da Escola de Comunicações e Artes (ECA), professora Elza Ajzenberg, no artigo “Schenberg: um pensar criativo”, afirma ser impossível separar a vida de Mario Schenberg (1914-1990) tanto do desenvolvimento científico quanto do Instituto de Física da USP, bem como de discussões sobre os problemas emergentes do País.
Entre suas contribuições de grande originalidade como físico, Schenberg explicou a origem mesônica dos raios cósmicos, o papel do neutrino na questão das supernovas, uma estatística clássica de partículas indistinguíveis, a determinação do limite Chandrasekhar-Schenberg e o momento angular do campo gravitacional. Seus trabalhos em álgebra quântica, mecânica quântica e geometria, gravitação e causalidade constituem linha de importante aspiração visando a uma teoria unificada das forças descritas pela física.
“Não me guio muito pelo raciocínio. O raciocínio é importante para provar as coisas, mas é a intuição que mostra a solução dos problemas”, afirma Schenberg numa entrevista concedida a Amélia Império Hamburger.
O interesse de Schenberg pela arte surgiu aos 8 anos de idade, quando visitou pela primeira vez a Europa com seus pais. Iniciou seus estudos em História da Arte em 1938, durante sua segunda viagem à Europa. Voltou ao Brasil em 1942, quando se tornou amigo de Alfredo Volpi. Sua atividade de crítico de arte foi iniciada com a organização da primeira exposição individual de Volpi.
Participou das Bienais de 1965, 1967 e 1969 como representante dos artistas no Júri Nacional de Seleção. Nas décadas de 1960 e 1970 escreveu numerosas apresentações de artistas renomados, elaborando cerca de 400 documentos de crítica de arte. “Os seus textos percorrem importante trajetória da história da arte no Brasil entre os anos de 1940 e 1980”, afirma Elza.
O acervo do Centro Mario Schenberg constituiu-se a partir de uma doação de Schenberg em 1989. É formado por uma hemeroteca pessoal, livros de arte do próprio físico, catálogos de exposições, periódicos e, principalmente, cerca de 400 originais das críticas de arte do professor (grande parte corresponde ao período entre 1963 e 1987, com 32 títulos referentes a movimentos e grupos artísticos).
Contém ainda manuscritos, cartas, recortes de periódicos, fotografias e discos. “A organização desse material torna possível aquilatar o pensamento estético de Mario Schenberg”, explica a coordenadora do centro, Elza Ajzenberg.