IEB monta ‘Vozoteca’ com vozes das personalidades do planeta

Arquivo de 12 mil vozes registradas pelo jornalista paulistano Luiz Ernesto Kawall ao longo de 50 anos é doado para o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Entre as gravações, está a da atriz Marlene Dietrich cantando "Luar do sertão", e de Coralina lendo seus poemas.

Leila Kiyomura / Jornal da USP

Não há, ó gente, ó não

Luar como esse do sertão

Não há,

Luar como esse do sertão ó gente, ó não

Oh! Que saudade do luar da minha terra

Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão

Este luar cá da cidade tão escuro

Não tem aquela saudade do luar lá do sertão

Quando o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP abrir ao público a Vozoteca, a música Luar do sertão poderá ser ouvida, na USP, com mais encanto. Quem sabe, alguém vai se lembrar de olhar a lua na Praça do Relógio quando a voz de Marlene Dietrich, com seu sotaque um pouco alemão, um pouco americano, cantar a composição de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco

Uma voz doce, gravada em 1959, no Rio de Janeiro. O timbre afinado de Dietrich está no arquivo de 12 mil vozes registradas pelo jornalista paulistano Luiz Ernesto Kawall ao longo de 50 anos.

“A atriz veio para se apresentar na boate Vogue, em Copacabana, e quis homenagear os brasileiros com uma música regional”, conta Kawall. “Foi o Cauby Peixoto, segundo ele próprio confirmou, quem a ensinou a cantar de um dia para o outro”.

Dietrich, que no decorrer da 2ª Guerra Mundial cantava para aliviar a dor dos soldados feridos, é apenas uma entre as centenas de personagens selecionadas por Kawall. “A voz é um estado de alma”, justifica o slogan gravado nas etiquetas dos documentos do acervo. Estado de alma que permeia o cotidiano do jornalista, desde quando entrou na primeira turma da Faculdade Cásper Líbero, em 1947. “Por alguns imprevistos, acabei me formando na segunda turma. O paraninfo foi Carlos Lacerda, jornalista, político e fundador do jornal Tribuna da Imprensa. Ouvi o seu discurso impressionado. Uma voz firme, convicta, capaz de derrubar presidentes.” Lacerda foi considerado o inimigo político número um de Getúlio Vargas. Também Jânio Quadros renunciou, em 25 de agosto de 1951, logo depois do discurso de Lacerda atacando o presidente na televisão.

Foi a voz de Lacerda que incentivou o jornalista a iniciar seu acervo. “Meu primeiro emprego foi oferecido por ele como correspondente em São Paulo da Tribuna da Imprensa.” Os discursos de Lacerda, Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek, entre outros presidentes do Brasil, também podem ser ouvidos na Vozoteca.

Doação

O acervo que, durante mais de cinco décadas, habitou a sala do apartamento de Kawall, na Praça Benedito Calixto, no bairro paulistano de Pinheiros, agora está no IEB. “Hoje, dia 11 de junho, é meu aniversário”, comemora Kawall, servindo curau de milho aos repórteres. “Faço 70 mais 16. É. Sou de 1927”.

O jornalista achou que já era tempo de compartilhar com os jovens estudantes, professores, pesquisadores e curiosos do Brasil e do exterior os sons que a vida lhe proporcionou. “Eu já tinha oferecido a Vozoteca para várias instituições. Mas agora está em boas mãos. Quando entrei em contato com os pesquisadores do IEB, eles logo se interessaram”.

Um presente que o jornalista oferece à USP. “A Vozoteca é muito rica. Acredito que será uma referência para várias pesquisas, tanto no Brasil como no exterior”, afirma Elisabete Marin Ribas, coordenadora dos acervos do IEB. “Quem quiser investigar a história da música popular brasileira tem aqui muitas fontes. Vicente Celestino, Nelson Gonçalves, Luiz Gonzaga e Carmen Miranda, entre tantos outros, podem ser ouvidos em gravações de música e também em filmes e depoimentos”, explica. Também é possível investigar todo o processo de produção sonora no Brasil. “Há ainda as capas dos discos, desenhadas por grandes pintores, como Portinari, Volpi e Pablo Picasso. Os discursos dos presidentes e de outros políticos sugerem pesquisas em história, ciências sociais e economia, entre outras áreas. A Vozoteca nos traz muitas possibilidades de pesquisa”.

Elisabete explica que, no decorrer deste ano, a coleção passará por várias etapas de conservação. “O acervo reúne vários tipos de gravações em fitas cassetes, VHF, discos em várias rotações, livros, esculturas, capas de discos. Todo esse material será, primeiro, higienizado. Vamos examinar o estado de cada peça, para ver se necessita de restauração. Faremos também uma descrição documental, mostrando o conteúdo de cada item, e a digitalização de todos os documentos. A regravação será feita por empresas especializadas. Procuraremos preservar o material, que deverá ser manipulado por especialistas”.

O acervo exige técnicas que os pesquisadores do IEB desconheciam e que agora estão sendo desenvolvidas. “Nós estamos trabalhando, por exemplo, nas gravações de Mário de Andrade, que eram um arquivo mudo e que agora começam a falar. Também há as músicas de Camargo Guarnieri.” A Vozoteca será disponibilizada ao público no início do próximo ano e todos os interessados poderão consultá-la.

A Vozoteca surpreende pela diversidade. Há vozes não só de pessoas, mas também de pássaros de todo o Brasil. “Mas a que mais me emocionou foi a de Cora Coralina lendo os seus poemas”, observa Elisabete.

Fonte de vida

Os sons são a fonte de vida de Kawall. Com a mudança do acervo para o IEB, o espaço onde ele se encontrava ficou vazio. Mas o jornalista não consegue doar o hábito. Ouvir vozes já faz parte de seu cotidiano. Acorda às seis horas ouvindo o rádio. Lê todos os jornais e revistas. Não consegue ficar quieto. E não sai de casa sem antes ler o horóscopo de Quiroga, em Estado de S. Paulo. “Sou geminiano com ascendente em Gêmeos”, diz.

Quando vai pela cidade, já começa a garimpar discos antigos, coisas diferentes. Volta com a sacola cheia. E as estantes começam a ser habitadas por um novo acervo. “Nossa, quanta coisa ainda para ouvir. Tem duas vozes que ainda não consegui: a de Pablo Picasso e a de Júlio de Mesquita Filho. Quem tiver notícias dessas vozes, por favor, me informe”.

O colecionador está sempre garimpando. Procura os sons como um caçador de pérolas, mobilizando amigos e amigos dos amigos. Foi assim que encontrou a voz de Santos Dumont. “Eu a consegui por meio de uma filha de um amigo meu, num museu em homenagem aos pioneiros da aviação, numa cidadezinha nos Estados Unidos. É um discurso de 1929, feito quando ele recebeu a Comenda da Légion d’Honneur, a maior condecoração do governo francês”.

Interessante também a voz do inventor Thomas Edison, registrada em 1877 num fonograma. É a primeira gravação de voz de que se tem notícias. O discurso de Washington Luís, quando ele voltou ao Brasil em 1937, foi conseguido por intermédio de um sobrinho do ex-presidente. Carlos Lacerda também colaborou com a coleção, conseguindo o discurso de Churchill e Maria Callas cantando Ave Maria.

A Vozoteca guarda também os depoimentos que o jornalista gravou na sua trajetória como jornalista de cultura. Há entrevistas com vários artistas, desde os modernistas de 1922 e os participantes da 1ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1951. “Tenho registrada a alegria de Manabu Mabe quando, na Bienal de 1959, recebeu o prêmio das mãos de Juscelino Kubitschek como o melhor pintor brasileiro.”

“A voz é um estado de alma”, repete Luiz Ernesto Kawall. “É essa alma que será ouvida muito em breve na USP”.

Os sons do dono

E quem vai gravar a voz do dono? Luiz Ernesto Kawalll só não se lembrou de registrar sua própria voz. Paulistano de Higienópolis, o jornalista casado com Zilda, com três filhas, cinco netos e duas bisnetas, tem muitas histórias para contar. De vez em quando, os estudantes aparecem por lá para relembrar o tempo em que o repórter andava de terno e gravata e fazia acrobacias para conseguir uma boa informação.

“Vou te lembrar uma história que aconteceu em 1958, quando o Brasil ganhou pela primeira vez a Copa do Mundo. Era tarde de domingo, lá pelas 5 horas”, narra empolgado. “E o Carlos Lacerda me liga do Rio, pedindo que eu fosse ao Estadão pegar umas fotos do Brasil campeão. E lá fui eu. Na época, o Cláudio Abramo comandava a redação, na rua Major Quedinho. Ele ficou indignado com o meu pedido. Disse que era impossível ceder as fotos. Que o jornal seria processado porque tinha acordo de exclusividade com a Reuters. Saí da redação frustrado. Mas, de repente, o doutor Julinho, que tinha ouvido a conversa, me parou na frente do elevador e me deu um ‘bolo’ de fotos, que trouxe escondido no bolso. Disse que era um presente para o Carlos Lacerda, com um forte abraço. Só sei que, na primeira página da Tribuna da Imprensa, saíram as fotos do Pelé e outras imagens emocionantes do Brasil campeão. Enfim, acho que foi a primeira vez que o Júlio de Mesquita Filho furou o próprio Estadão. Publicamos com exclusividade”.

O repórter avisa: “Nunca contei essa história para ninguém”. E há muitas outras que valem a pena ser gravadas e documentadas.

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