Curso de reciclagem leva segurança ambiental e renda para catadores

Parceria do Instituto GEA com a Poli, o curso tem dois objetivos principais: aumentar a renda dos catadores e abordar questões ligadas a segurança e saúde conscientizando sobre o perigo de se trabalhar em atividades de reciclagem de eletrônicos.

Valéria Dias / Agência USP

Alguns deles são analfabetos e muitos não têm sequer o diploma do ensino fundamental. Mesmo assim, sentam nos bancos escolares da USP para aprender que um “inofensivo” computador pode prejudicar – e muito – a própria saúde e o meio ambiente, caso seja desmontado de forma inadequada. Na Escola Politécnica (Poli) da USP, uma das mais tradicionais no ensino de engenharia do Brasil, catadores de materiais recicláveis de cooperativas de São Paulo, ABCD e Guarulhos estão recebendo treinamento para reciclar equipamentos eletrônicos de forma saudável e rentável.

O curso tem dois objetivos principais: aumentar a renda dos catadores e abordar questões ligadas a segurança e saúde conscientizando sobre o perigo de se trabalhar em atividades de reciclagem de eletrônicos. Isso porque a maioria dos catadores desconhecem que na fabricação desse tipo de equipamento são usadas substâncias contaminantes, como mercúrio (monitores de LCD, baterias, ligamentos, termostatos, lâmpadas); chumbo (soldas, baterias, circuitos integrados, monitores de tubo – também chamados de CRT); cromo (placas); cádmio (bateria, chips, semicondutores, monitores), e arsênio (celulares).

Trata-se do Projeto Eco-Eletro – Reciclagem de Eletrônicos, idealizado pelo Laboratório de Sustentabilidade em Tecnologia da Informação e Comunicação (LASSU) da Poli e o Instituto GEA Ética e Meio Ambiente . A iniciativa recebe recursos do Programa Petrobras Desenvolvimento e Cidadania 2010 e terá duração de dois anos.

“Há relatos de catadores que, devido à falta de informação, desmontavam monitores CRT dando marretadas no aparelho.”

Marretadas

Há relatos de catadores que, devido à falta de informação, desmontavam monitores CRT dando marretadas no aparelho. É uma situação que representa um alto risco de contaminação, pois a exposição ao chumbo pode ser bastante danosa, tanto para o trabalhador como para o meio ambiente. A ingestão ou aspiração do metal está associada a problemas no sistema nervoso central, auditivos e hepáticos, anemia, mal funcionamento dos rins, hipertensão, fraqueza nas extremidades do corpo, inibição da ação do cálcio e de proteínas.

Já a questão da renda é trabalhada por meio da conscientização de que se as peças de um computador forem desmontadas e separadas devidamente, terão um maior valor agregado, gerando mais vantagens financeiras ao catador de reciclável.

A primeira turma iniciou as atividades em abril deste ano. “Até outubro, já haviam sido capacitados 70 catadores, além de 31 pessoas da sociedade civil. A última turma está prevista para outubro de 2012 e a estimativa é que, até lá, tenham sido capacitados 180 catadores”, informa a presidente do Instituto GEA, Ana Maria Domingues Luz. Cada turma tem geralmente 10 catadores, além de alunos ouvintes interessados no curso.

O curso ocorre durante duas semanas. Na primeira, de segunda a quinta-feira, os catadores tem aulas teóricas no LASSU, das 9 às 12 horas. Na sexta-feira, eles fazem uma visita ao Centro de Descarte e Reúso de Resíduos de Informática (CEDIR) da USP. “Ainda na sexta-feira fazemos uma avaliação oral dos alunos para verificar se eles aprenderam os conteúdos passados nas aulas. Na semana seguinte, são realizadas as aulas práticas, também no LASSU, e com equipamentos do CEDIR. É quando os catadores colocam a mão na massa e precisam desmontar computadores, notebooks, teclados, mouses, scanners e impressoras e separar as peças”, aponta Walter Akio Goya, professor da parte técnica do curso. Akio é pesquisador do Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores (LARC) do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais (PCS) da Poli, onde atualmente é aluno de mestrado. A parte prática do curso (desmontagem dos equipamentos) é ministrada pelo professor André Rangel Souza.

Plano de negócios

As aulas abordam quais ferramentas mais adequadas para a desmontagem de microcomputadores, as peças que compõem o aparelho, questões sobre meio ambiente, saúde e contaminação ambiental, e até um plano de negócios para ensiná-los como se organizar para trabalhar com reciclagem de eletrônicos e valorizar peças. “Antes de realizarem o curso, muitos catadores juntavam todas as máquinas, sem se preocupar em desmontá-las, e vendiam tudo como sucata para ferros velhos”, conta Akio.

Os alunos utilizam em sala de aula uma apostila repleta de ilustrações, desenvolvida em conjunto com a psicopedagoga Thaís Furlan. Akio comenta que uma das dificuldades é que cada turma é bastante distinta e heterogênea. “Temos desde alunos praticamente analfabetos, até outros com grandes habilidades de negociação de materiais recicláveis”, explica.

Uma das soluções encontradas para aproximar duas realidades tão distintas é explicar as funções de cada uma das peças que compõem o computador por meio de comparações com a realidade vivida pelos catadores nas cooperativas.

“A ideia é que os catadores repassem os conhecimentos aos colegas da cooperativa de onde vieram”

Catador = processador

Por exemplo, o terreno para construção do galpão é comparado à placa mãe; o próprio galpão de armazenamento, com o HD. Os “bags” que armazenam cada peça, com a memória. Já o processo de coleta e triagem de materiais é semelhante ao que o processador faz na máquina. A energia elétrica que mantêm a cooperativa é comparada à fonte; o ventilador que mantém o ambiente agradável é semelhante a ventoinha. Já os carros, caminhões e carrinhos que transportam os materiais são comparados a disquetes, CD-Rom, pen-drive, etc. Outra forma de chamar a atenção dos catadores é o uso de muitos vídeos para conscientizá-los do problema.

Cada cooperativa manda geralmente dois alunos para receberem o treinamento. Cada um deles recebe, ao final do curso, um kit de ferramentas para desmontagem dos equipamentos eletrônicos. A ideia é que os catadores repassem os conhecimentos adquiridos aos colegas da cooperativa de onde vieram. Posteriormente, a cooperativa receberá uma placa explicativa com a indicação do tipo de material e qual procedimento deve ser adotado para cada um deles. O objetivo é que, ao visualizar as peças, o catador tenha mais facilidade para realizar a desmontagem.

Quanto aos monitores, os catadores são orientados a não realizar a desmontagem, visto que a reciclagem da peça exige cuidados específicos devido ao chumbo e ao fósforo presentes nas peças. Segundo Akio, por meio de um acordo, a empresa Vertas – Gerenciamento e Transformação de Resíduos Tecnológicos vai recolher os monitores e televisores de tubo das cooperativas que integram o projeto. “A empresa providencia a coleta, a descontaminação das peças e faz reaproveitamento dos materiais. Em troca, as cooperativas se comprometem a vender a eles as placas-mãe de computadores”, finaliza o professor.

Ouro e prata

O motivo do interesse na placa-mãe é o ouro (Au), a prata (Ag), e o cobre (Cu), entre outros metais, usados em sua fabricação. Especialistas da área apontam que 1 tonelada de PCs tem mais ouro do que em 17 toneladas do minério bruto do metal. Mas nem se anime em raspar a placa daquele seu computador velho: a extração desses metais é bastante complexa.

A Vertas envia as placas (em grandes quantidades) para a UMICORE, empresa localizada na Bélgica, e uma das poucas que realiza um processo de reciclagem que permite a retirada desses elementos das placas e o seu reaproveitamento por indústrias, evitando que esses metais sejam extraídos da natureza. Como se vê, é mais uma iniciativa que ajuda a fechar mais um ciclo de reciclagem.

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