Leila Kiyomura / Jornal da USP
Quando o urubu solitário pousou na janela da cozinha para cobiçar o almoço de Gilberto Mendes, ele não imaginava que iria voar tão alto. Bastou uma mordida no peixe que estava sobre a pia para o menos inspirador de todos os pássaros cair na pauta e virar a sonata Seul un urubu solitaire. A música, dedicada ao solista e maestro Yuri Serov, foi apresentada em um festival de canções sobre pássaros em São Petersburgo.
Enquanto compositores de todo o mundo buscaram voos de pássaros majestosos, Gilberto Mendes se limitou ao passeio do urubu. O tal que, como ele, contempla o céu de Santos, sua cidade natal, para descansar no aconchego de seu apartamento. É assim, com ares de quem está prestes a compor ou escrever algo inusitado, que o professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP vive os 90 anos.
Danielle em surdina, langsam, lançado pela Algol Editora, é a primeira novela do compositor. São 88 páginas de uma história fluida sobre um jovem compositor que nasceu na cidade de Santos, mas vive e se projeta na Alemanha como um dos mais destacados compositores de sua geração naquele país. São as lembranças de Mathias Emmanuel de Oliveira que vão tecendo a história, trazendo fatos do final da década de 1930 e o drama da Segunda Guerra Mundial. “Danielle é a síntese de todas as mulheres que conheci”, conta Mendes. E Mathias? “É um pouco do que sou e do que vivi”.
Gilberto Mendes dá os primeiros passos como escritor, embora tenha feito artigos com assiduidade para vários jornais. “Esses textos serão publicados, no próximo semestre, pela Editora Perspectiva”, anuncia. O novelista já começa a pensar no próximo enredo.
Foi exatamente assim, como quem não pensava em ir muito longe, que Mendes começou na música. Uma iniciativa tardia. Tinha 20 anos. Só que não parou mais. Deu a volta ao mundo. Sua obra é gravada, editada e tocada nos cinco continentes. “Mas, aqui no Brasil, ninguém se lembra de mim, não. Na verdade, eu sempre vivi do meu trabalho como funcionário da Caixa Econômica Federal e como professor da USP”, diz. “De dia eu era bancário e, à noite, estava regendo no Teatro Municipal de São Paulo.”
Ninguém conhece é o que Mendes imagina. O seu nome no Google apresenta 4,8 milhões de resultados (considerando os homônimos). No YouTube é possível conhecer a sua obra inteira em entrevistas, documentários, interpretações, concertos. E há vários artigos, dissertações e teses, como os doutorados de Carla Delgado de Souza, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Teresinha Prada, da USP, que estão sendo lançados em livro (leia texto abaixo).
Um “transmodernista” – Três de junho de 2013. Tarde de chuva. “Enfim, o Jornal da USP se lembrou de mim?”, critica Gilberto Mendes. Mas recebe os repórteres com o bom humor de sempre. O jeito de olhar, sorrir, comentar, movimentando as mãos e os braços, é o mesmo do visionário que, na década de 1960, mudaria a história e o bom comportamento da música erudita brasileira. “Todos dizem que a minha música é de vanguarda. Mas ninguém sabe o que é isso direito. Bem, vanguarda é um termo que começou em meados do século passado. Creio que é aquele que está à frente”.
Certo é que o músico já foi considerado pós-modernista, tropicalista, comunista, vanguardista, entre outros termos que, na verdade, não conseguem classificar o universo e o seu pensamento em constante transformação, em contínuo aprendizado. Hoje, aos 90 anos, depois de tantas composições, sonhos, ideais, Gilberto Mendes afirma: “Creio que sou um transmodernista”.
Foi o transmodernista que, na década de 1960, em plena ditadura, compôs Beba Coca-Cola, ou Motet em ré menor para piano e orquestra, considerada a mais popular da música erudita brasileira. A partir do poema concreto de Décio Pignatari, o compositor criou uma espécie de antijingle, numa crítica ao consumo da sociedade moderna através do seu conhecido ícone.
“Na época, eu fiquei esperando uma represália da Coca-Cola”, conta Mendes. “Que nada. Um diretor me procurou com uma caixa enorme de refrigerantes. E me agradeceu dizendo: ‘Você conhece aquele dito popular, falem bem ou mal, mas falem de mim?’.” A música foi cantada por corais de todo o mundo. “Só sei que até eu, logo depois de ouvi-la, ficava com uma vontade danada de beber Coca-Cola.” O conceito terminava com um sonoro arroto – o primeiro arroto-solo da história da música universal – e com o coro falando a palavra “cloaca”, que encerra o poema de Pignatari.
Futebol – Outro clássico de Gilberto Mendes, composto em 1969, é Santos Football Music. Foi apresentada pela primeira vez, depois de quatro anos, por Eleazar de Carvalho no 17º Festival de Música Contemporânea, em Varsóvia, na Polônia. “Nunca fui de gostar de futebol, mas fiz essa música em homenagem ao Santos e ao futebol de Pelé. Será que alguém ainda se lembra dessa música?”.
Às vésperas de o Brasil sediar a Copa do Mundo, a peça bem merece ser lembrada. Mendes põe esse sonho no horizonte. “Quem sabe possa fazer parte da abertura dos jogos?” A reivindicação é muito válida. A peça consegue transportar o espectador para o estádio, com todas as vozes dos torcedores através da apresentação de uma gravação com locuções esportivas. E, o mais curioso, o público participa cantando, gritando gol… Ruídos e gritos regidos no momento e tom certo. “O público participa orientado por um segundo regente, que vai levantando cartazes: gol, vogal, cantem”, explica Mendes. Agora, o mais curioso é o maestro apitando, dando cartão vermelho aos músicos que se levantam para jogar bola. No final, essa bola é passada para a plateia.
Com Santos Football Music, Gilberto Mendes movimentou a plateia do Brasil e do exterior. E integrou a teatralização nos corais e orquestras. Uma peça própria de um músico que se dizia adepto do comunismo. O compositor partilhou a originalidade da peça com a participação de todos. A peça foi concebida como um “Divertimento a la Mozart”, porém superou o êxtase das sinfonias do austríaco.
Mendes atravessa o tempo compondo. Músicas que registram os momentos político-sociais do Brasil, como Mamãe eu quero votar, de 1984, lembrando o movimento Diretas Já, e Vão entregar as estatais, de 1985, entre outras. Ou tragédias como o incêndio da favela da Vila Socó, em Cubatão, em fevereiro de 1984, provocado pelo vazamento de 700 mil litros de gasolina de um dos dutos da Petrobras. O compositor protestou com Vila Socó, meu amor. “Sempre digo que sou, no mínimo, três compositores diferentes: o de vanguarda do Santos Football Music, Beba Coca-Cola, Nascemorre e Ashmatour, o clássico moderno de Pour Eliane e Trova I e o clássico popular que compôs Salada de Frutas e A Festa. Mas, como estou vivendo muito, vou indo para o quarto compositor, que é uma soma de todos eles”.
Músico, compositor, jornalista, fundador da Música Nova, pioneiro da Música Concreta. Uma biografia que vai sendo evidenciada por pesquisadores de música. Embora esteja aposentado da USP, Gilberto Mendes continua à frente do Festival Música Nova de Santos. O apartamento da rua Artur Porchat de Assis, no bairro do Boqueirão, em Santos, tem as portas abertas para os jovens estudantes e compositores. “Sempre me procuram para me pedir uma orientação. E eu atendo com muito prazer”.
Se não fosse ter quebrado o fêmur ao tropeçar no sofá da sala, Gilberto Mendes arriscaria apresentar aos repórteres os passos que exibiu na composição Último tango em Vila Parisi, mas se limita a tocar o piano Brasil com teclas vermelhas. Mostra as últimas canções que fez, atendendo ao pedido de amigos ou inspiradas por um voo de urubu ou de outros pássaros, que insistem em descansar no jardim da cobertura. Também canta, e muito bem, acompanhado pelos cuidados da pintora Eliane, com que se casou há 30 anos. Nas paredes, os retratos que ela fez do compositor em diversos momentos. A cachorra Mel, com a sua tranquilidade, também divide a atenção do artista. É esse cotidiano do compositor que será apresentado, no segundo semestre, pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). “Ela vai lançar um CD com as minhas músicas”, conta orgulhoso. “Outra coisa importante: pretendo doar todas as partituras e documentação das minhas peças e artigos de jornais que escrevi para o Departamento de Música da USP de Ribeirão Preto. Creio que, assim, poderei continuar colaborando com novas pesquisas”.
Nos mares do sul
A história de Gilberto Mendes é tema de diversas pesquisas de mestrado e doutorado de pesquisadores de música de todo o País. A violonista Teresinha Prada acaba de lançar, pela Editora Terceira Margem, Gilberto Mendes – Vanguarda e Utopia nos Mares do Sul. Resultado da tese que defendeu na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob orientação do professor Arnaldo Contier, a autora destaca a trajetória política e social do compositor.
“Eu queria mostrar a luta de Gilberto Mendes e provar que a música erudita também resistiu às ditaduras latino-americanas e provocou, com música do mais alto nível e discernimento, o discurso totalitário”, explica Teresinha. “Tive o total apoio do compositor. Ele me instigou dizendo que essa história tinha que ser contada”.
Teresinha também nasceu em Santos e procura acompanhar de perto os movimentos culturais do artista. “Ele já era citado nos melhores livros e dicionários de história da música, a partir dos anos 70, no Brasil e no mundo. Acompanhei seu trabalho ao vivo, desde a minha adolescência, assistindo ao Festival Música Nova, idealizado por ele. É, sem dúvida, uma das pessoas mais veneradas pela comunidade brasileira”.
Gilberto Mendes – Entre a vida e a arte, é outra tese de doutorado que se transforma em livro. Carla Delgado de Souza traz uma pesquisa detalhada da obra do compositor, focando não só a trajetória no campo artístico, mas a sua experiência criativa. Com a orientação da professora Rita de Cássia Lahoz Morelli, a tese foi defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), contribuindo para os estudos da antropologia da música. Lançado pela Editora da Unicamp, o livro é, segundo a autora, uma etnografia da experiência social de Mendes. “O estudo da trajetória de Gilberto Mendes é interessante na medida em que, através de sua experiência social como compositor erudito brasileiro atuante na segunda metade do século 20, é possível mapear uma série de relações existentes entre arte e sociedade, evidenciando as tensões entre criação artística, mercado musical e políticas estéticas”.
Gilberto Mendes – Vanguarda e Utopia nos Mares do Sul, de Teresinha Prada, Terceira Margem, 144 páginas, R$ 30,00.
Gilberto Mendes – Entre a vida e a arte, de Carla Delgado de Souza, Editora da Unicamp, 264 páginas, R$ 40,00.