Embora trabalhe diariamente com a questão da saúde humana, o que com frequência é sinônimo de lidar com o sofrimento alheio, a dor e a morte, o exercício da medicina e a formação na área raramente levam em consideração aspectos como religião e espiritualidade no contato com os pacientes. Mas para o psiquiatra Frederico Camelo Leão, independentemente das crenças pessoais do médico, ele deve estar preparado para lidar com a dimensão espiritual. “O paciente demanda isso”, afirma o pesquisador do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
No Instituto, Leão coordena o Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (ProSER), iniciativa que busca compreender a relação entre esses três fatores a partir de atividades de pesquisa, ensino e assistência terapêutica. Segundo o médico, a complexidade do ser humano e a saúde mental vão muito além das questões neuroquímicas – e é essa premissa que guia o programa.
A complexidade do ser humano e a saúde mental vão muito além das questões neuroquímicas.
A ideia não é que a espiritualidade e a religiosidade entrem como uma alternativa ao tratamento médico. “É uma forma complementar, dentro da visão de que a busca da saúde é mais do que apenas tomar remédios”, explica. Leão conta que trabalhos científicos na área indicam que práticas como meditação, orações ou a dedicação a uma denominação religiosa podem estar associadas a melhoras na defesa imunológica e na longevidade. Ao frequentar um templo ou igreja, por exemplo, a pessoa, além de trabalhar sua espiritualidade, tem também suporte social, ou seja, frequenta um lugar onde pode compartilhar experiências e obter apoio, o que traz benefícios à saúde, podendo, inclusive, inibir ímpetos suicidas.
Mapeamento espiritual
Os pacientes em tratamento no IPq são convidados pela equipe do ProSER a responder um questionário. Trata-se da anamnese espiritual, uma forma de mapear o perfil espiritual/religioso, a partir de questões que buscam identificar os valores cultivados pelo paciente – por exemplo, se ele vê relação entre o sofrimento psíquico e a religião seguida, ou a que a pessoa recorre em momentos de dificuldade.
Essa anamnese, que em si já apresenta uma função terapêutica, pois estimula a reflexão do paciente sobre essas questões, é seguida de discussão pela equipe que vai, então, sugerir o encaminhamento a alguma das atividades promovidas pelo programa, como meditação, oficina de contos, yoga e psicoterapia transpessoal. No caso da yoga, o programa se estende também aos funcionários do Instituto.
O trabalho feito pelo ProSER não envolve práticas religiosas, mas tem a parceria do Comitê de Assistência Religiosa (CARE) do Hospital das Clínicas. O Programa faz a intermediação com esse Comitê quando o paciente deseja receber a visita de um representante religioso, como um rabino ou pastor.
O trabalho feito pelo ProSER não envolve práticas religiosas. O Programa faz a intermediação quando o paciente deseja receber a visita de um representante religioso, como um rabino ou pastor.
Segundo o coordenador do ProSER, é difícil dizer se a melhora do paciente tem relação direta com a abordagem espiritual, especialmente ao se tratar do IPq, cuja assistência multiprofissional é uma das características mais marcantes. No entanto, os depoimentos dos pacientes revelam, em geral, que se sentiram mais humanizados. “Muitas das queixas de pacientes internados vêm do fato de serem tratados apenas como um leito, um diagnóstico. Quando você faz uma abordagem diferente, dando a oportunidade da pessoa falar sobre sua intimidade, suas crenças, a pessoa se sente mais acolhida”, conta Frederico Leão.
Ciência e espiritualidade
Embora ainda exista resistência por parte da comunidade científica ao lidar com questões que envolvam religião e espiritualidade, Leão enxerga um grande crescimento na produção científica na área, que encontra espaço nas revistas de impacto. Um exemplo é a Revista de Psiquiatria Clínica, que publicou em 2007 uma edição especial dedicada ao assunto e mantém atualmente uma seção chamada Série Mente-Cérebro, que abrange trabalhos na área. “O programa vem sendo reconhecido, vem crescendo dentro da Universidade. Na psiquiatria, de um modo geral, há um crescimento extraordinário das publicações, não só no Brasil”.
Esse avanço se deve, em parte, à decisão da Associação de Psiquiatria Americana que, em 1995, atualizou o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), incluindo problemas espirituais e religiosos como uma nova categoria diagnóstica, ou seja, eles deixavam de ser classificados como transtornos mentais. A mudança deu impulso à criação no IPq do Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos (NEPER), embrião do ProSER, e motivou estudiosos também em outros países. “A resistência vem de quem acredita que a questão central da psiquiatria é diagnóstico e medicação. Mas a psiquiatria não se esgota aí”, crê Frederico Leão.
Atendimento no IPq
Informações sobre triagem e atendimento no IPq podem ser obtidas pelo telefone (11) 2661-8045, diariamente, das 7 às 19 horas (inclusive sábados, domingos e feriados).