Publicado pela Editora da USP (Edusp), o livro Messianismo e Milenarismo no Brasil conduz o leitor às cosmovisões que procedem do catolicismo e do protestantismo e, ao mesmo tempo, a uma incursão pelo universo mítico indígena. A edição, organizada pelos professores João Baptista Borges Pereira e Renato da Silva Queiroz, é fruto de um dossiê apresentado pela Revista USP. Nesta nova versão, os textos foram reeditados e procuram propiciar um entendimento ampliado dos complexos episódios sociorreligiosos que acontecem no País
O desafio da Revista USP em captar as expressões da diversidade no campo religioso e as manifestações do cenário multiétnico brasileiro foi reforçado pela Editora da USP (Edusp). O tema do dossiê publicado em 2009 na edição 82 da revista é apresentado no livro Messianismo e Milenarismo no Brasil, que acaba de ser lançado. A organização é dos professores João Baptista Borges Pereira e Renato da Silva Queiroz, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que também coordenaram o dossiê.
Os textos foram reeditados e atualizados e oferecem aos leitores informações e contribuições teóricas para um entendimento ampliado dos complexos episódios sociorreligiosos ocorridos no Brasil. Acontecimentos que, segundo observam os organizadores do livro, são aparentemente irracionais, vistos pelo senso comum como epidemias mentais, loucura coletiva ou fanatismo. Porém, despertam a atenção da mídia e desafiam a compreensão dos estudiosos.
“A natureza dos fenômenos estudados parece resistir à progressiva secularização do tempo presente, contrariando o precipitado juízo de que já se esgotara o ciclo das mobilizações cuja identidade se traça nas pregações dos profetas e nas crenças inspiradas em representações míticas e religiosas que prefiguram novos milênios”, justificam Borges Pereira e Queiroz no prefácio. “Múltiplos surtos têm sido, desde então, registrados em território brasileiro e em outros países, como o ocorrido em Teresina, no Piauí, que mobilizou cerca de 120 pessoas, arrebatadas pela pregação de seu líder, que se intitulava ‘Profeta’. Alegando ter sido informado por um anjo, esse mensageiro passou a anunciar a iminência do fim do mundo. Na tarde de 11 de outubro de 2012, data fatídica apontada pelo Profeta, cerca de cem de seus seguidores encontravam-se recolhidos em duas casas denominadas ‘arcas’, à espera do fim dos tempos, mas foram retirados de lá por força de uma diligência policial, para que não fossem linchados pela população local ou se imolassem em suicídio coletivo.”
Interesse acadêmico
Como bem lembra José de Souza Martins, Professor Emérito da FFLCH, ao assinar a orelha do livro, é extenso e bem documentado o conhecimento dos movimentos messiânicos no Brasil, a partir do fim do regime escravagista. “Uma retomada dos acontecimentos poderia ser interpretada como repetição do já sabido. No entanto, nos diferentes episódios do livro, os autores dos ensaios acrescentaram detalhes que enriquecem nossa compreensão de cada um dos diferentes movimentos, não raro retomando estudos já realizados por eles mesmos.”
Na avaliação de Martins, o livro pode ser lido como fecho de um ciclo de interesse acadêmico pelos messianismos e milenarismos brasileiros, destacando a proposta implícita de retomada do assunto em outra perspectiva, tanto no que se refere ao enquadramento interpretativo quanto no que se refere ao rol de ocorrências que ultrapassam os meados dos anos 1950 e trazem a temática até os dias atuais. “Refiro-me, em especial, aos movimentos milenaristas associados à dinâmica da frente de expansão da Amazônia Legal, a partir dos anos 1960, protagonizados por migrantes de Minas Gerais, como o movimento de Maria da Praia, e pelos migrantes do Nordeste sertanejo, como o dos seguidores da profecia de Padre Cícero, que se deslocaram em busca das Bandeiras Verdes, atravessando o Tocantins e o Araguaia.”
São as raízes da diversidade religiosa que os artigos buscam, aliando pesquisa, reflexão e fatos reais. O único texto que não está na edição 82 da Revista USP e completa o livro é o de Gladson Pereira da Cunha, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. “Podemos dizer que o Brasil tem sido, ao longo de sua história, um campo fértil para o surgimento de movimentos messiânicos”, observa. “Seja pelo caminho da tradição portuguesa, que tinha na figura do rei dom Sebastião o grande líder e libertador do povo lusitano e ainda o responsável pelo seu triunfo sobre os demais reinos europeus, seja também pela existência do conceito messiânico no seio do ideário indígena. Ou ainda pela combinação de opressão, pobreza e esperança religiosa em uma nova terra sem injustiças. O fato é que por todo território brasileiro inúmeros movimentos de caráter messiânico podem ser encontrados em seu desenvolvimento histórico.”
Cunha destaca, em seu ensaio, a história do Estado do Espírito Santo, que, segundo ele, é pouco conhecida mesmo pelos capixabas. Resgata também a história do messias Udelino Alves de Matos. “Divergindo de outros messias brasileiros, ele foi uma daquelas pessoas de quem quase nada se sabe. De algum modo se assemelha ao monge João Maria, do Contestado entre Santa Catarina e Paraná, isto é, envolto em lendas e mistérios. Muito provavelmente Udelino seria mais um entre vários jovens agricultores do sul da Bahia que ingressaram em terras capixabas para tentar a sorte num chão sem dono.”
Ao messias Udelino eram atribuídos dons considerados fantásticos: a leitura e a oratória. “Ouvi de um militar reformado do Exército, nascido e criado próximo a Ecoporanga, que teria ouvido, em alguns sermões de Udelino, naqueles sertões, a seguinte pérola: ‘Naquele tempo e lugar, caixeiro viajante ou motorista de ônibus que soubesse ler era como um doutor. E com Udelino não havia de ser diferente’.”
Segundo Cunha, Udelino provocava a admiração do povo. “Em sua percepção, é possível considerar que Udelino, mesmo com a pouca leitura que tinha, fora capaz de criar ao redor de si uma aura de encantamento devida à sua sabedoria, principalmente ao se considerar que ele falava das coisas que lia numa Bíblia, objeto que pertencia ao outro mundo, que ele mantinha sempre no bolso do paletó, de onde a sacava em momentos estratégicos, quando precisava calar a boca de alguém.”
Judaísmo antigo
No texto “O desenvolvimento histórico do messianismo no judaísmo antigo: diversidade e coerência”, Rodrigo de Souza, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, também analisa as ideias messiânicas que, ao longo dos tempos, chegaram ao Brasil. “Suas origens remontam ao antigo Oriente Próximo e adquirem contornos determinantes no judaísmo primitivo. O messianismo ocupou um papel de grande importância no desenvolvimento do judaísmo antigo e na formação de suas ramificações e grupos distintos, dentre os quais se encontram os primeiros cristãos. O estudo do fenômeno, nesse contexto, é uma das formas mais significativas de se compreender o judaísmo e o cristianismo na Antiguidade, e lança as bases para a compreensão das concepções messiânicas subsequentes, inclusive as que viriam a se desenvolver no Brasil.”
Em seu artigo “Sobre os messianismos e milenarismos brasileiros”, o professor Lísias Nogueira Negrão, do Departamento de Sociologia da FFLCH, analisa essas manifestações no Brasil. Segundo ele, o País tem sido pródigo na geração de movimentos messiânicos. “Entre os inúmeros autores que estudaram os maiores movimentos messiânicos ocorridos no Brasil, distingue-se uma espécie de ‘vertente ficcionista’, cujo maior expoente foi sem dúvida Edmundo Moniz”, esclarece. “Segundo essa vertente, os messias teriam sido líderes revolucionários das massas camponesas e suas ‘cidades santas’, comunidades socialistas precursoras do futuro das sociedades modernas. Peças antes políticas que fruto de pesquisas históricas, essas interpretações consistiram em um contraponto à ideologia oficial, que postulava serem aqueles movimentos retrógrados, antiprogressistas. Talvez tenham exercido um papel salutar, no sentido de formular uma imagem mais positiva dos movimentos, mas passaram longe das motivações e intenções reais dos líderes e liderados das sublevações enfocadas.”
O professor aponta que, nas sociedades modernas ou nos seguimentos modernos de sociedades tradicionais, os movimentos messiânico-milenaristas tendem a escassear, mas não a desaparecer. “É fato que nelas há outros canais de expressão das insatisfações maiores, sobretudo econômicas, que tendem a assumir um caráter político e massivo.”
O pesquisador observa que, nas sociedades contemporâneas, há outras clivagens além da de classe social, produtoras de carências, necessidades e insatisfações. “No fundo, os problemas da teodiceia e da busca de salvação permanecem, mesmo que alternativas não religiosas com eles disputem o apanágio das soluções. Em função mesmo dessa concorrência entre o sacro e o secular, com este oferecendo soluções racionais para os males da vida, a busca de soluções racionais do primeiro tipo tende a diminuir. Mas mesmo entre indivíduos de alto nível de escolarização e afeitos à utilização das mais modernas tecnologias, cidadãos dos mais modernos países, a solução mágico-milenarista ainda permanece. Nos Estados Unidos, há jovens extremamente afeitos à cultura tecnológica que se suicidam na certeza de que serão levados, ressurretos, por discos voadores.”
Euclides da Cunha
Para surpresa dos leitores, Walnice Nogueira Galvão, professora da FFLCH, traz uma face desconhecida do sociólogo, jornalista e escritor brasileiro Euclides da Cunha. “Como para comprovar que a história é feita de paradoxos, Euclides da Cunha, ateu e antirreligioso, é autor de um livro que viria a se tornar peça-chave dos estudos sobre o messianismo no Brasil”, observa.
Em um ensaio que traz à tona o cotidiano do jornalista atento e do escritor sensível à realidade do sertanejo, a professora vai trilhando os seus escritos. “Nas reportagens feitas por Euclides, encontram-se os primeiros sinais de que sua inteligência está prestes a captar algum engano no ar”, analisa Walnice. “Penetrando no sertão e chegando até Canudos, o escritor vai gradativamente intensificando esses sinais e mitigando o entusiasmo patriótico que no início demonstrara, sem, todavia, perdê-lo de vez. Desviando-se dos demais repórteres, fará reflexões sobre o cunho equivocado da acolhida à bala dada aos canudenses, quando outro tipo de tratamento mais civilizado poderia apaziguá-los. E dali a um palmo está o surgimento da admiração que por eles passa a manifestar.”
Ao tentar elucidar a origem da Guerra de Canudos, o escritor, na análise de Walnice, “mostra como o advento da República acarreta alterações no ânimo dos conselheiristas: novos impostos, separação entre Igreja e Estado, liberdade de culto e instituição do casamento civil, que contradizia frontalmente um sacramento católico”.
Os artigos também fazem uma análise dos fatos que mostram o drama social provocado pelo fanatismo. No artigo “O demônio e o messias: notas sobre o surto sociorreligioso do Catulé”, o antropólogo Renato da Silva Queiroz conta: “No mês de abril de 1955, trabalhadores-parceiros domiciliados numa gleba de terras da fazenda São João da Mata, no município mineiro de Malacacheta, tomados de forte exaltação místico-religiosa, transformaram-se nos principais protagonistas de um drama social fadado a permanecer, nos meios acadêmicos, mais esquecido do que citado sob o título ‘A aparição do demônio no Catulé’. Parceiros recém-convertidos à Igreja Adventista da Promessa, nossos personagens envolveram-se num enredo de cenas trágicas: sacrificaram quatro de suas crianças, mataram alguns de seus cães e gatos e perderam dois de seus homens adultos abatidos pelos soldados que se dirigiram à Grota do Catulé em diligência policial para prender os fanáticos, tudo isso em meio a acusações internas de possessão demoníaca e espancamento de crianças e adultos para conjurar o demônio e ‘apurar a igreja de Deus’”. Queiroz explica que, no cenário brasileiro, mobilizações dessa natureza, especialmente entre as populações sertanejas, não são raras e nem se encontram extintas.
Leila Kiyomura / Jornal da USP