“Nymphographia” e a vitória-régia

Chriss Cass, egresso da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 

 

Meu nome é Chriss Cass, sou artista plástico, pesquisador, designer gráfico e botânico entusiasta, bacharel em Artes Visuais (2023) pela Escola de Comunicações e Artes da (ECA) da USP. O prelúdio desse projeto se deu em 2019 com uma visita despretensiosa ao Hidrofitotério da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP em Piracicaba onde tive o primeiro contato com uma coleção de plantas dedicada a espécimes que tenham uma relação estrita com o ambiente aquático.

A partir desse encontro, meu interesse por essas plantas foi aumentando. Em uma das disciplinas que cursei no primeiro semestre desse mesmo ano, desenvolvi um projeto de instalação artística e site-specific, chamado Jardim Aquático. A proposta era revitalizar a antiga Fonte Luminosa – localizada em uma das rotatórias do campus Cidade Universitária do campus da USP em São Paulo – a partir do potencial latente que vislumbrei de transformá-la em um imenso jardim de plantas aquáticas. Algo que para além do intuito paisagista, de tornar um “cartão-postal” da Universidade, como já fora antigamente, proporcionaria também experiências sensíveis, sejam elas estéticas, poéticas, educativas e ecológicas, uma vez que esse projeto visava ressaltar e apresentar a diversidade de formas de vida desse tipo de plantas, não apenas ao público universitário, estudantes de botânica, mas também à comunidade extramuros.

Para tal, contei com a doação de plantas e conhecimentos técnicos do Hidrofitotério da Esalq, através de Charles Albert Medeiros, bacharel em Gestão Ambiental (Esalq), que na época era um dos monitores responsáveis pelo espaço e com quem, posteriormente, tive a oportunidade de aprofundar meus conhecimentos sobre o tema colaborando como editor e design gráfico de seu livro sobre Plantas Aquáticas e Palustres, ainda em processo, como desdobramento do seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Outra pessoa de grande importância foi a Uli Suadicani, engenheira agrônoma (Esalq) e responsável pela Belas Águas Paisagismo. Nymphographia – Chriss Cass_2023_compressed (1)

A implementação do projeto no campus do Butantã contou com apoio da Prefeitura do Campus, mas acabou sendo interrompida na fase de testes, devido a avarias imprevistas na estrutura. O material vegetal que seria utilizado foi temporariamente acondicionado no Departamento de Artes Plásticas da ECA até o início da pandemia de Covid-19. Com a restrição de acesso à Universidade, acabei levando todo esse material para minha casa e dando continuidade ao cultivo dos espécimes, o que acabou intensificando minha relação com essas plantas, especialmente quando vi as primeiras flores das ninfeias, foi “amor à primeira vista”.

Desde esse dia, comecei uma jornada de pesquisa técnica, poética e filosófica em diálogo com essas plantas. Essa paixão me levou ao desejo de tornar aquele instante da floração “eterno”, de reconstituir aquela sensação inenarrável ao admirá-las. Ao mesmo tempo, isso conduziu-me a diversas reflexões sobre a duração da vida e das potencialidades da existência vegetal. Conhecer sua morfologia e desenvolvimento, por meio de estudos teóricos e práticos, com grandes contribuições da Uli Suadicani, que me ensinou tudo o que conheço sobre Nymphaeaceae, por meio não só de seu curso Jardins Aquáticos em Bacias, mas de todo diálogo que estabelecemos. Ela se tornou a maior colaboradora dos meus projetos artísticos nesse tema, não apenas pelos espécimes vegetais, mas por toda a parceria e conhecimentos riquíssimos compartilhados. Aliado a isso, iniciei a leitura de pensadores voltados às plantas, como Evando Nascimento, Emanuelle Coccia e Stefano Mancuso, inspiraram-me a pensar sobre formas de existência e resistência poéticas para o próprio ser humano, como um “Devir Vegetal”.

Nessa imersão no mundo das ninfeias, lótus e vitórias-régias, em 2021 decidi trancar o meu curso de graduação, faltando apenas a última disciplina de conclusão de curso, na qual já estava matriculado dava continuidade ao desenvolvimento do projeto Nymphographia, concebido em 2020, para o meu TCC. Durante os quase dois anos em que estive “longe do curso”, dediquei-me
intensivamente a cultivar ninfeias e à busca por conhecer ao vivo uma vitória-régia, a maior espécie da família das Nymphaeaceae. Nesse meio tempo, também realizei muitos trabalhos artísticos autorais e escrevi textos sobre o processo de criação e reflexões poéticas sobre essa inspiração vegetal. Também participei do evento Corpo – Uma Fantasmagoria de Nós, em 2022, uma exposição coletiva e seminário realizados pelo Grupo de Pesquisa Poética da Multiplicidade (GPPM) – vinculado à ECA, CNPq e coordenado por minha orientadora do TCC, professora Branca Coutinho de Oliveira – no espaço do Atelier Paulista.

Convidei então, o atual diretor técnico do Jardim Botânico de São Paulo (JBSP), Nino Tavares Amazonas, para visitar essa mostra e através desse contato, tive a oportunidade de apresentar a ele toda a minha pesquisa em desenvolvimento e as obras que estavam em exibição. Desse diálogo, surgiu a perspectiva de também realizar um desdobramento desse projeto de pesquisa no próprio Jardim Botânico com as ninfeias, o qual foi recebido com muito entusiasmo e com apoio da Reserva Parques, atual administradora do parque.

Em 2023, já havia destrancado minha matrícula para concluir o TCC e dar início dessa pesquisa de campo. Desde março, fiz religiosamente minhas visitas semanais às segundas-feiras ao Jardim Botânico, nas quais realizava anotações, fotografias e coleta das flores, folhas, frutos e rizomas para os experimentos poéticos artísticos e ao mesmo tempo, compartilhava com os funcionários os conhecimentos técnicos adquiridos sobre o manejo de plantas aquáticas. Como também tinha acumulado uma pequena coleção de ninfeias variadas – que fui adquirindo desde 2019, através de doações do Hidrofitotério da Esalq e da Belas Águas Paisagismo –, decidi doar mudas desses exemplares, de flor de lótus (Nelumbo nucifera) e outras plantas aquáticas que estão atualmente na coleção viva do Jardim Botânico de São Paulo. Ao longo desse projeto, iniciei juntamente a eles, o esboço do que virá a ser futuramente a coleção de Nymphaeaceae da instituição.

Durante o desenvolvimento das pesquisas e dos trabalhos artísticos, tinha em mente a realização de uma mostra de artes visuais, simultânea em dois espaços com as obras resultantes: o Espaço das Artes (EdA-USP) e no próprio Jardim Botânico de São Paulo.

Queria levar a Arte para o espaço das plantas e as plantas para o espaço da Arte, criando deslocamentos e reflexões sobre os limites e as transversalidades entre esses dois eixos. Enviei um projeto ao PROAC, para o edital No: 42/2023, propondo uma mostra essa mostra, com carta de interesse do Jardim Botânico em sediar o evento, declarando a relevância do meu projeto para a instituição.

Infelizmente, a mostra simultânea não aconteceu, mas de certo modo consegui atingir o objetivo. Em julho, o Jardim Botânico inaugurou um evento chamado “Salão de Botânica”, do qual, em apoio ao meu interesse em expor os materiais que produzi não apenas como resultado do TCC, mas da pesquisa científico-poética que estava realizando lá, convidaram-me para integrar a mostra com uma exposição individual homônima ao meu projeto – Nymphographia. A banca de apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso foi realizada em 31 de julho, aberta ao público, e dentro do próprio espaço expositivo da mostra. E, em 4 de dezembro de 2023, participei da exibição coletiva dos formandos de Artes Visuais da ECA, na qual apresentei a montagem de uma segunda versão da obra “Vitrine Botânica”, com o apoio do professor Mario Ramiro, um dos professores que foram muito importantes na minha formação, sendo também um dos coordenadores e curadores dessa exposição que continuará aberta até 15 de março de 2024.

Essa pesquisa que se iniciou com o projeto de conclusão da graduação, acabou tomando proporções inesperadas, já durante o seu desenvolvimento e também posteriormente. Desde os primeiros contatos sobre o projeto no Jardim Botânico de São Paulo indaguei sobre a possibilidade e necessidade de reintrodução de vitórias-régias na coleção, tentando resgatar as memórias de quando o espécime esteve presente no parque, através de relatos dos próprios funcionários, frequentadores antigos e registros dessas ocorrências. Desse modo participei ativamente dessa empreitada, colaborando com contatos, manejo e manutenção dos espécimes, além de compartilhar com os funcionários da instituição os conhecimentos técnicos que adquiri através dos estudos, pesquisas e cursos realizados.

Durante esse processo, realizamos conjuntamente a primeira tentativa de introduzir novamente as vitórias-régias, com mudas doadas por Harri Lorenzi – engenheiro agrônomo brasileiro e um dos maiores contemporâneos, no que diz respeito à botânica –, diretor do Instituto e Jardim Botânico Plantarum (Nova Odessa). Essa experiência de reintrodução, infelizmente, não teve êxito, devido as condições climáticas incomuns no início da primavera, como as baixas temperaturas, as mudas jovens não vigaram, mas criaram vínculos importantes, não apenas entre as instituições, mas para a pesquisa que desenvolvo. Lorenzi e o Jardim Botânico Plantarum, assim como a Uli e a Belas Águas Paisagismo, foram os meus colaboradores e apoiadores, fornecendo todo o
material biológico de vitórias-régias que possuo atualmente.

Em outubro, quando visitei a Uli para realizar seu curso, trocar conhecimentos e coletar materiais biológicos para os meus trabalhos artísticos, comentei sobre a situação das vitórias-régias aqui no Jardim Botânico, cujo manejo teve sempre o seu apoio, mesmo remoto, e indaguei a ela sobre a possibilidade de doação de algumas de suas mudas do espécime, que já estavam mais desenvolvidas. Com muito entusiasmo ela aceitou a proposta e então, comuniquei a instituição para que organizassem os procedimentos necessários para a segunda tentativa de reintrodução. No início de dezembro, fomos buscar as mudas doadas por ela e instalá-las no espaço do Jardim Botânico: um exemplar de Victoria cruziana e quatro de Euryale ferox – uma espécie de “vitória-régia”, nativa da Ásia – aquisição inédita à coleção do parque.

Quando tudo começou, a partir de um projeto final de disciplina da graduação, não imaginei as proporções que isso tomaria, e muito menos em um futuro tão próximo. Apesar de ser autor dessa pesquisa, as inter-relações desenvolvidas não apenas no âmbito temático arte-botânica, mas entre as diversas instâncias da própria USP (Hidrofitotério da ESALQ, Prefeitura do Campus CUSASO, Departamento de Artes e a própria Escola de Comunicações e Artes) e as demais instituições envolvidas, direta ou indiretamente, e que contribuíram com a pesquisa, foi fundamental para que os
resultados desse trabalho tenham tomado a proporção que tomaram.

As contribuições dessa grande colaboração não dizem respeito somente ao âmbito acadêmico ou mesmo às Artes Visuais. A exposição realizada em julho, no Jardim Botânico, permitiu-me divulgar alguns dos resultados da pesquisa científica acadêmica, sob um olhar poético e científico, como o objetivo de “levar a Arte para o lugar das plantas”, criando essa experiência sensível de identificação e estranhamento para um público extramuros universitário e também os frequentadores o parque, pouco habituados a esse convívio inesperado na instituição, da simbiose ente Arte Botânica.

A poéticas e metodologia criativa dos trabalhos artísticos, evocam algo para além da já esperada “ilustração botânica”, colocando as plantas não como objeto de estudo, mas seres vivos que tem muito a nos ensinar em sua diversidade de existência e resistência.

A abordagem adotada na instalação composta pelas obras de arte, vale-se do resgate da antiga linguagem dos gabinetes de curiosidade, que tentavam entender o mundo sob as primeiras formas de desenvolvimento científico, onde o fantástico ainda era parte do imaginário corrente. A reaproximação do campo poético às ciências é também um dos modos contemporâneos de imagens poéticas por meio do qual o artista pode criar experiências sensíveis e compartilhá-las com o público, coautores da multiplicidade de sentidos das obras.

O jardim botânico incentivou e apoiou essas iniciativas, como declarou o próprio diretor atual, Nino Amazonas, em sua carta institucional de apoio ao meu projeto: “a exposição de arte sobre ninfeias tem um grande valor educativo e cultural. Acreditamos que essa exposição pode ajudar a conscientizar o público sobre a importância de se preservar essas plantas tão importantes para os ecossistemas aquáticos.”

As pesquisa futuras que pretendo continuar desenvolvendo em parceria com a instituição e com a Belas Águas Paisagismo, assim como outras instituições e parceiros que possam vir a agregar de algum modo esse grande projeto, visam a estabelecer os cuidados necessários para a devida manutenção e propagação da vitória-régia, por meio da polinização e germinação das sementes no próprio espaço do jardim Botânico de São Paulo. Uma vez que essa planta possui um ciclo de vida curto, será necessário, em um futuro próximo, substituí-la por uma nova. Tenho grandes expectativas de que possa ser sucedida por seus descendentes diretos, nascidos na própria instituição.

Também continuo empreendendo esforços para a introdução da espécie amazônica (Victoria amazonica) e, por que não almejar também, a recém-identificada, Victoria boliviana, ainda ausente nas coleções públicas e particulares do Brasil. Para além do manejo de vitórias-régias e ninfeias, minhas futuras pesquisas se voltam de um modo geral às plantas aquáticas, investigando a origem delas dentro da formação do parque e das estruturas criadas para essas coleções (Hidrofitotério e lagos), contribuindo não apenas para o resgate histórico, como também na identificação e aquisição de novos espécimes buscando a revitalização dessas coleções vivas.

O trabalho está disponível aqui.

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