Recordando o professor Luiz Roberto Salinas Fortes

João dos Reis, egresso do curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP - 1968-1971

 

“Lá fora, o melhor dos mundos, como se nada tivesse acontecido. Os generais prosseguiam, meticulosos, na patriótica azáfama: o povo brasileiro deixava-se salvar ao som estridente do ‘eu te amo meu Brasil’ e se preparava para o grande espetáculo, sob o comando de Pelé e Tostão (…) que as TVs transmitiriam do México” (p. 45) – escreve Luiz Roberto Salinas Fortes (1937-1987) em Retrato calado (Cosac Naify, S.Paulo, 2012, 2ª ed., 136 págs.).

Fui seu aluno em 1968-1969 de Teoria do Conhecimento e Ética e Filosofia Politica no curso de Filosofia na USP. Retomei as lembranças de quem me ensinou a ler Jean-Jacques Rousseau (Discurso sobre a origem da desigualdade) e Louis Althusser (Para ler O Capital). Os anos depois do AI-5 foram tumultuados – para a vida acadêmica e para a história do Brasil. Lembro dele na sala de aula depois de uma das prisões, angustiado – e como me sentia impotente para prestar solidariedade.

Os anos em que fui universitário foram marcados pela desesperança. No engajamento na resistência, havia o medo da prisão e da tortura, de ser preso e trair os amigos e a família. Professores da Universidade cassados, exilados; estudantes presos, clandestinos, desaparecidos.

A prisão, a tortura deixaram marcas: “a dor que vai me matar continua doendo, bem presente no meu corpo, ferida aberta latejando na memória. Daí a necessidade do registro rigoroso da experiência, da sua descrição, da sua transcrição literária” (p.42), escreve o professor-filósofo em suas confissões.

Esteve nos presídios da ditadura militar, em São Paulo – na OBAN, no DEIC e no Dops. Foram várias acusações, muitas delas baseadas em suspeitas. Ele mesmo questiona: “Deveria ter saído do País? Não sei. Partido para a clandestinidade e me comprometido com a luta armada, desta vez para valer? Talvez. Mas, que perspectiva nos oferecia, que não a suicida, a ação violenta contra o regime?”(p. 45)

Marilena Chauí registra na introdução da edição de 1988: “Estamos diante de alguém que se viu a perguntar: o que é a razão? o que é a História? o que é a bondade? Estamos diante de alguém que atravessou trôpego e cego, o labirinto do terror para descobrir-lhe, em estado de choque, o fio condutor dessa prodigiosa máquina de produção de culpa e de destruição humana do humano pela desintegração da fala e pelo sequestro do pensamento”.

Eu fui reencontrá-lo em 1984, em um curso para professores. Disse que eu também tinha vivido os dilemas da minha geração – e lembrei que quase fui reprovado em 1969 – e, no ano seguinte, tranquei a matricula no curso de Filosofia.

“Na cordilheira dos edifícios da minha cidade, onde agora busco reintegrar-me, da Sierra Maestra de concreto armado, armados quem sabe um dia lá de cima descerão os guerrilheiros do novo tempo e virão, barbudos, implacáveis como Bruce Lee, redimir-nos a todos? No anos 200O, quem sabe?” (p.117) – diz o mestre que não chegou a viver o novo século.

Estas foram as últimas palavras do filósofo-professor: “eles quase tinham me conseguido quebrar, restando-me agora como único recurso, como único antídoto e contraveneno, a metralhadora de escrever, o alinhamento das palavras, o arado sobre a folha branca, a inscrição como resposta. É aqui, nesse exato momento, que se trava a luta. Cada traço escrito é um tiro, é um golpe”.(p.115)

Meus queridos amigos Maria Cleuza de Castro Leite, aluna de História da USP; Jonas Tadeu da Silva Malaco, aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, militantes do POC (Partido Operário Comunista); Antonio Roberto Espinosa, aluno da Faculdade de Filosofia da USP, militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, estiveram presos nos anos 70 no DOPS e no Presídio Tiradentes. Antonio Benetazzo, aluno da Faculdade de Filosofia e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e militante da ALN (Aliança Libertadora Nacional) foi preso e esteve “desaparecido”; foi localizado pela família anos depois no cemitério Dom Bosco em Perus.

A minha juventude foi marcada pela repressão, pelo terror do Estado policial. Citando Paul Nizan, em Aden, Arábia: “Eu tinha vinte anos, não me venham dizer que é a mais bela idade da vida”.

 

 

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