Universidade tem sido palco de debates sobre o processo impugnatório reunindo defensores e contrários ao impeachment
Com o deflagrar de um governo com níveis crescentes de impopularidade e a governabilidade por um fio, o país vê-se em crise. Após o encaminhamento do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, movimentos de ideologias e posicionamentos dos mais diversos vêm ganhando força na sociedade. Dentro desse contexto, nas últimas semanas a USP tem sido palco para debates sobre o processo impugnatório, como aconteceu na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e na Faculdade de Direito (FD).
Aceita em dezembro de 2015 pelo presidente da Câmara dos Deputados, o peemedebista Eduardo Cunha, a abertura do processo de impeachment se deu sob a acusação de crime de responsabilidade em decorrência das “pedaladas fiscais”, praticadas pelo governo Dilma em seu segundo mandato. Caracterizadas pelo atraso intencional de repasses a bancos públicos para cumprir metas orçamentárias, as pedaladas aconteceram no âmbito das despesas com benefícios sociais, como o seguro-desemprego e o Bolsa Família. Nesse meio tempo, enquanto os beneficiários continuaram a receber normalmente, a dívida com os financiadores cresceu temporariamente.
Enquanto para alguns o trâmite sustenta-se sob acusações válidas que visam preservar a legalidade da Constituição, para outros o ato é inconsistente e fere o vigor democrático recém-conquistado pelo país. Os últimos atos ocorridos na Universidade contaram com a presença de representantes expressivos de ambas as vertentes de opinião, que utilizaram o espaço público para manifestar seus posicionamentos – ambos os lados reivindicando para si o status de defensores da “vontade do povo brasileiro”.
“Não vai ter golpe!”
No dia 29 de março, o Vão Livre da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP sediou o USP Contra o Golpe: Ato em Defesa da Democracia. Contando com a presença e o apoio de intelectuais como Marilena Chauí, André Singer, Paulo Arantes, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Paulo Zaluth Bastos e Gilberto Maringoni, além de representantes estudantis e movimentos sociais como CUT, UNE, MMM, FUP e MST, o ato aconteceu “em defesa do direito dos 54 milhões de eleitores que votaram em Dilma”.
Insistindo na caracterização da ação jurídica como “golpe”, os oradores criticaram, principalmente, a atuação da oposição e os desdobramentos do protagonismo do juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato.
Nalu Farias, coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), foi uma das primeiras a se pronunciar. Em uma fala abafada por falhas técnicas do equipamento de som, a representante da MMM esclareceu a oposição ao impeachment como uma extensão ao repúdio por Eduardo Cunha enquanto força política conservadora. De acordo com o seu entendimento, “a luta contra o golpe não se diferencia da luta das mulheres”.
“Eu fiquei ligeiramente otimista depois de ver a cúpula do PMDB, em três minutos, sair do governo Dilma”, afirmou Gilberto Maringoni, professor da Universidade Federal do ABC, ao vislumbrar na saída do PMDB da base aliada uma abertura maior aos movimentos de esquerda. Utilizando-se de descontrações sobre o excesso de vaidade de algumas figuras políticas, como Renan Calheiros e Michel Temer, o professor entremeou seu discurso com jocosidades e metáforas para explicitar sua satisfação diante da movimentação mais recente das massas em prol do governo. “É por isso que eu estou feliz, porque nós tornamos a luta dos governantes numa massa de mobilização e de convencimento como não tínhamos há muito tempo”, concluiu.
Em crítica ao governo Dilma, enquanto Maringoni citou o descumprimento do programa que a elegeu, um representante da Frente Brasil Popular afirmou que a ocupação das ruas em oposição ao impeachment também é contrária à política econômica e fiscal implementada recentemente.
Por sua vez, Marilena Chauí, professora do Departamento de Filosofia da FFLCH, disse que o que está acontecendo pode ser identificado como o desmantelamento da democracia. “Os três poderes da República estão completamente acuados por um grupo de procuradores que se caracterizam por juízes que pisoteiam a Constituição”, afirmou.
Em referência aos protestos pró-impeachment, Chauí declarou, acusatória: “o que nós temos é uma multidão enfurecida, desiludida, movida por ódio e pela vingança, solta, sem qualquer organização por movimentos sociais ou partidos políticos”, enquanto minimizou o poderio do PMDB, um dos principais partidos a mobilizar forças pela queda da presidenta. “E não é à toa que eles gritam ‘Viva Bolsonaro’, ‘Viva Moro'”, disse, ao concluir seu discurso com comparações entre os manifestantes pró-impeachment e o movimento fascista, por entender que essas pessoas estão “em busca de um líder autoritário”.
Carina Vitral, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), deu destaque a outras universidades onde atos semelhantes aconteciam naquele mesmo dia. “A universidade é, mais uma vez, palco de resistência democrática, de respeito à vontade do país”, comemorou.
De acordo com o professor da Unicamp Pedro Paulo Zaluth Bastos, uma das motivações centrais para o trâmite do impeachment – também entendido por ele como “golpe” – é a interrupção das investigações relacionadas a improbidades políticas. “Ele [o golpe] não tem nada a ver com a disputa contra a corrupção, mas sim com o fato de 65% dos deputados da Comissão do Congresso Nacional serem denunciados por atos de corrupção”, citando ainda como motivador a pretensão de alguns em ver o ex-presidente Lula encarcerado.
Já o ator Sérgio Mamberti teve como referência a tomada de poder pelos militares em 1964, caracterizando-o como um acontecimento de igual natureza à movimentação atual. Para o ator, a saída da presidenta fere “a democracia pela qual tantos lutaram e morreram”. Ao final de sua fala, Mamberti reviveu um de seus personagens televisivos mais marcantes, o Doutor Victor, do programa Castelo Rá-tim-bum. “Não vai ter golpe, vai ter luta! Raios e trovões!”, esbravejou, enquanto retirava-se de cena coberto por aplausos.
Apesar de ser organizado pelo comitê USP Contra o Golpe, formado por funcionários, estudantes e professores da USP contrários ao impeachment, a participação de discentes restringiu-se aos espectadores, assistindo a discursos matizados entre o passional e a teórico.
O ato também contou com a presença do ex-Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Eduardo Suplicy, que convidou todos os presentes para a manifestação ocorrida no último dia 31.
“Impeachment já!”
Quase uma semana depois, no dia 4 de abril, professores, juristas, advogados, ex-alunos e representantes discentes reuniram-se na Faculdade de Direito (FD) da USP para a promoção do Grande ato em defesa das instituições no Largo de São Francisco – Impeachment já!. Mediado pela ex-aluna Ruth Lunardelli, o evento contou com a presença de Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Júnior, autores do processo de impeachment em andamento. Paschoal e Reale Júnior são professores do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da FD.
O ato aconteceu no parlatório, uma estrutura de mármore localizada em frente ao prédio monumental do Largo. Assim como contou uma ex-aluna presente no local, a tribuna livre era usada por estudantes que desejavam falar à população. Seu uso mais emblemático, no entanto, se deu durante a ditadura militar, quando o parlatório era também símbolo de resistência.
O ato se iniciou com Andrea Mustafa, a primeira mulher a presidir o Centro Acadêmico XI de Agosto. Após a execução do hino nacional, ela leu o manifesto daquela noite. Ao afirmar que o processo de impeachment de todo e qualquer governante está previsto nos artigos 85 e 86 da Constituição da República, ela enfatizou: “Afirmamos que a denúncia dos crimes de responsabilidade contra a presidenta Dilma e seus ascetas estão lastreados em provas cabais. Afirmamos também que os deputados e senadores devem exercer seu mandato para votar pelo impeachment, remédio juridicamente embasado e politicamente legitimado pela ampla maioria da população brasileira”.
Ao ser chamado à frente do parlatório, do alto de seus 93 anos, Hélio Bicudo falou com dificuldade àqueles que aguardavam ansiosamente por sua presença. Bicudo fez questão de frisar sua satisfação com o momento. “Estou muito feliz de estar aqui por uma causa que é do povo brasileiro, uma causa justa” afirmou ao destacar a importância do ato acontecer em um local “onde bacharéis travaram a luta pela abolição da escravatura e pela Constituinte em 1932”.
Na trilha sonora do ato, palavras de ordem como “fora, Dilma!”, “o PT roubou”, “a nossa bandeira jamais será vermelha” e coros em exaltação ao juiz Sérgio Moro. O apoio de movimentos como o MBL, Revoltados Online, Endireita Brasil e Vem Pra Rua garantiu aos participantes a aquisição de bonecos “pixulecos” e bandeiras do Brasil.
O jargão improvisado de Miguel Reale Júnior, também autor do pedido de impeachment, emendou um “deleta a Dilma” ao final de seu acalorado discurso. “Essas velhas Arcadas se erguem para proteger a Justiça e proteger a nossa pátria. Aqui é o berço da Justiça, e temos todos a responsabilidade de ajudar o país a sair dessa encalacrada que nos colocaram. Uma quadrilha tomou conta do país, em todos os cantos do governo.” Sobre as pedalas fiscais, o mote da ação, Reale Júnior afirmou que elas não aconteceram em proteção ao Bolsa Família, mas sim “para esconder a dívida”.
Enquanto o jurista Modesto Carvalhosa evocou comparações entre petistas e marqueteiros nazistas, Ophir Cavalcante saiu da história para a teologia, ao afirmar “legitimidade da Constituição” estando abaixo apenas da “de Deus”. Se para Cavalcante, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o que está em curso é um golpe permanente contra a democracia, Marco Aurélio Morelli, ex-presidente do Centro Acadêmico, mostrou mais contentamento ao declarar que “não esperava voltar a essa tribuna para tirar outro Presidente da República”, em referência ao impeachment de Fernando Collor de Melo.
Se o ato careceu de maior detalhamento jurídico como podiam esperar aqueles que traziam a faixa “justiça” em suas testas, o discurso energizado de Janaína Paschoal foi uma atração notável o bastante para gerar comoção nos presentes. Não demorou muito para que a advogada e também responsável por protocolar o pedido enviesasse seu discurso para metáforas com cobras, em referência a uma fala do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. “As cobras que se apoderaram do poder estão aproveitando as fraquezas humanas para se perpetuarem”, alegou Janaína, exaltada. Sobre o processo em si, a jurista resumiu com: “há motivos de sobra para o impeachment”. Ao final de sua fala, Janaína deixou o parlatório escoltada por seguranças.
Na noite de segunda-feira, discursaram também importantes nomes da Faculdade de Direito, como Felipe Locke, Marcos da Costa, Paulo Henrique Pereira, Maristela Basso e Ada Pellegrini Grinover.
O processo de impeachment atualmente
O processo de impeachment encontra-se agora em avaliação pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Após ouvir as acusações dos juristas contra a presidenta e a defesa do advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, a Comissão tem o prazo de 5 sessões para deferir se é à favor ou contra a abertura do processo. Em caso de rejeição, Dilma continua no cargo; caso o processo seja autorizado, ele deverá passar pela Câmara dos Deputados e, se for dada sua continuidade, pelo Senado, até que se obtenha a decisão definitiva.